Carta aberta a Francisco Assis
«Caro Francisco Assis, meu camarada e amigo,
Acredito que dirigir-me a ti, em carta aberta, é a melhor forma de exprimir uma posição crítica perante a que tu decidiste tomar em relação ao momento político e ao modo como o PS o tem enfrentado.
Na tua entrevista na RTP 3 assumiste que a orientação tomada pela direcção do PS, a concretizar-se, representaria um profundo erro para o interesse nacional e o interesse do Partido. A saber, a possibilidade de um entendimento à esquerda susceptível de viabilizar um governo alternativo ao da coligação da direita.
Explicaste que a tua posição advinha de um irreconciliável juízo negativo pois esse entendimento, a ter lugar, seria contranatura, dadas as posições irreconciliáveis do BE e do PCP com os compromissos europeus de Portugal.
Não puseste em causa a legitimidade parlamentar de uma solução de governo diversa da apresentada pela coligação PSD-CDS. Sendo assim, podemos passar de imediato ao cerne da questão que, nas tuas próprias palavras, tem aspecto de fractura com o entendimento prosseguido pela direcção do PS.
Em minha opinião, a tua posição releva do manifesto preconceito que emana recorrentemente do pensamento doutrinário que perfilhas - o de que todo o posicionamento político formalmente à esquerda do PS decorre tendencialmente de uma atitude irresponsável. Ora, o sentido de responsabilidade, como categoria política, bem o sabes, não é unívoco e está necessariamente ligado ao modo como se interpreta a acção para alcançar um objectivo proposto.
Situemo-nos, pois, no que deva consistir o objectivo primeiro de uma orientação política pós-eleitoral. Para a Coligação, evidentemente, o seu objectivo é minimizar os efeitos decorrentes da perda de maioria absoluta e continuar a governar. Mas, pergunto: para a esquerda ou, se preferires, para as esquerdas, é ou não legítimo e politicamente pertinente que se interroguem sobre a possibilidade de conferir corpo a uma alternativa de governo?
Falemos com total franqueza: deixar de colocar essa possibilidade significa, à partida, uma abdicação. Por parte daqueles que eventualmente continuem a preferir uma atitude de protesto a uma atitude de construção, uma simples posição de contrapoder entrincheirando os interesses da minoria que representam. Sê-lo-à inequivocamente, se tomada por parte do partido que se revela charneira bastante para poder gerar maiorias de participação e/ou de apoio a uma solução governativa.
Creio, pois, pertencer-te a ti a posição menos construtiva, face a um eleitorado que quis maioritariamente a mudança. Insustentável posição pelo que representa de desistência e de subordinação aos ditames da direita.
Argumentas que não é possível confiar em quem tem uma posição geneticamente antieuropeísta. Só que tal afirmação carece de ser confrontada pela atitude dos próprios interessados, cujo dilema, neste momento, se bem o interpreto, é um dilema de prioridades: conceder à direita o espaço político da governação em nome de um puro modelo ideológico ou viabilizar uma solução de governo, à esquerda, de acordo com a velha (e não desacreditada) arte do compromisso.
Acontece - como tu e eu bem sabemos - que para fazer compromissos é necessário revelar maturidade e capacidade políticas. Acontece, meu caro Francisco Assis, que desta vez a arrogância, pelo menos à cabeça, está do teu lado quando inviabilizas qualquer esforço de superação de um dos maiores traumas da esquerda portuguesa, o seu desentendimento crónico. Fechar a porta a quem finalmente dá sinais de a querer abrir consistiria num erro histórico, salvaguardando as proporções e a longitude, semelhante ao dos ortodoxos de origem cubana que nos Estados Unidos se manifestam contra a abertura a Cuba e o fim do bloqueio, prisioneiros do passado e sem visão de futuro.
Julgo compreender a razão de fundo porque o fazes. Por estares intimamente persuadido de que a existência do que chamas um esquema de blocos tripartidos no Parlamento evidencia um grau de proximidade maior entre a direita e o PS ou vice-versa. Trata-se, afinal, apenas um pouco mais sofisticada, da mesma tese do arco da governação, esse conceito operativo (sim, até agora por culpa de várias esquerdas) com que a direita a todo o tempo procura neutralizar o PS. E tu, com o mesmo diapasão.
O resultado das tuas opções é claro: no contexto histórico que vivemos, por efeito do teu pensamento, ao PS estaria aberta a ambição eleitoral (que, por agora, consideras falhada) de ser alternância de poder, mas nem pensar ter ambição de se constituir como alternativa de orientações políticas fundamentais para o país.
Afinal, nesta história, a quem pesaria mais o fardo do isolacionismo e a evidência da incapacidade política para gerar novas dinâmicas no eleitorado e na sociedade portuguesa?
Meu caro Assis, a motivação para te escrever esta carta aberta, para além da evidente divergência com a posição que vieste sustentar, no momento mais crítico dos processos negociais, que só pode ter contribuído para encorajar os adversários políticos do PS, radica ainda num aspecto pessoal, ligado à memória de ambos.
Como te lembras, a tua primeira investidura na presidência do Grupo Parlamentar do PS ocorreu na sequência imediata da minha demissão de tal cargo quando, incluindo sob a tua orientação, os Deputados do Grupo Parlamentar foram pela direcção do Partido dispensados de se pronunciar sobre o mérito da acordo de revisão constitucional por mim então assinado com o PSD e que viria a dar lugar à IV Revisão Constitucional, em 1997.
Invocar tal facto parece-me aqui relevante para referir dois aspectos.
O primeiro, para te lembrar de que as minhas considerações não são, de modo algum, as de um radical indiferente à importância dos consensos e à coragem de os celebrar, no momento certo, com as maiorias necessárias, quando a interpretação que fazemos do interesse nacional assim nos dita.
O segundo aspecto, para te reiterar que se tivesse nessa altura abdicado de defender o interesse primordial de uma solução alargada, ainda que, então, de sinal diverso (a dos dois terços exigíveis a uma revisão constitucional), e tivesse preferido o conforto do discurso politicamente correcto, a que tu próprio te sujeitaste, ainda hoje, provavelmente, muitos dos aspectos dinâmicos da modernização institucional estariam por alcançar ou não estariam apontados.
Permito-me, como corolário, deixar à tua consideração a sagacidade de Maquiavel quando afirmava que "as letras seguem as armas e os capitães seguem à frente dos filósofos".
Hoje, como sabemos, os capitães são os da finança e da indústria. E os filósofos que os seguem quem serão, meu caro Francisco Assis?
Teu camarada e amigo,
Jorge Lacão»
(Diário de Notícias,16 de Outubro de 2015)
Até breve
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