As saudades da antiga 4ª classe
Desde que a humanidade existe que todas as gerações se convencem que as gerações que lhes seguem são menos civilizadas, menos disciplinadas, menos educadas, mais ignorantes e menos preparadas do que a sua. Apesar da evidência de que, regra geral, a humanidade não regride, mas evolui, esta é talvez a única coisa que os homens não aprendem. Porque aprender isto implicaria uma dose insuportável de humildade: a de que os nossos filhos sabem e saberão mais do que nós.
Não vou aqui perder muito tempo a escrever sobre os exames do 4º ano. É uma conversa de surdos. Se eu repetir o que os pedagogos dizem, responder-me-ão os que defendem o rigor mas acham que as opiniões sobre educação não dependem de conhecimento científico, que pedagogos, psicólogos e pedopsiquiatras não passam de diletantes piegas. Se eu disser que somos o único país da Europa com exames nacionais no 4º ano que tenham efeitos na progressão do aluno, isso não interessa para nada, porque nós só respeitamos a experiência dos outros quando os outros mandam em nós em forma de troika. Se eu der o exemplo da Finlândia, onde não há retenção de alunos e só há um exame nacional no fim do ensino secundário, tendo, no entanto, segundo os dados do PISA, um dos melhores sistemas de ensino público do Mundo, dirão que somos culturalmente diferentes.
Fico-me então pela fantasiosa memória que as pessoas têm da sua escola. A escola de que tantos sentem saudades exercitava a memória. Não a desprezo. Mas não chega. Chegava quando estávamos destinados a um ofício onde repetir o que sempre foi feito era tudo o que se esperava de nós. Não chega num tempo em que tudo muda demasiado depressa e aprender coisas novas toda a vida é o que se exige a todos. Não chega quando a maioria da população se prepara para graus académicos mais exigentes.
A escola ensinava a ler, escrever e contar. Sem saber ler, escrever e fazer contas não se faz grande coisa. Mas saber ler também é perceber o que se lê. Saber escrever não é apenas não dar erros. Quem pensa mal escreve mal. Saber fazer contas é perceber o processo que leva a um resultado. Para fazer trocos bastava o que se aprendia. Para exercitar a capacidade abstração e apurar o sentido lógico não. E ensinava a obedecer. E é isso que explica que haja tanto patrão que ainda julga que não paga ao seus funcionário para pensar e tanto funcionário que acha que só estão ali para cumprir ordens.
Mas mesmo na complexidade das matérias lecionadas a escola era medíocre. Faço um desafio: ponham os miúdos do 4º ano a fazer os antigos exames. Ponham adultos que tenham apenas a 4ª classe (e que têm a vantagem de terem aprendido mais algumas coisas depois da escola) a fazer os atuais exames. É provável que tenham surpresas. Porque o que se aprende hoje nos primeiros anos de escola é muito mais complexo e difícil do que o que se aprendia antes. Porque memorizar, sendo importante, qualquer pessoa medianamente capaz consegue fazer. Raciocinar, criar e interpretar exige capacidades intelectuais bem mais sofisticadas. Mas custa confessar: somos, porque fomos preparados para o ser, menos inteligentes (sim, a inteligência exercita-se) do que os nossos filhos.
Quando as pessoas dizem que sabe mais quem acabou a antiga 4ª classe do que quem acaba hoje o 12º ano não se baseiam em qualquer facto ou evidência estatística. Apenas querem acreditar numa mentira caridosa. A não ser que tenha aprendido alguma coisa fora da escola - e todos o fizeram -, quem se ficasse pela antiga 4ª classe seria pouco mais do que analfabeto. A escola é hoje menos autoritária, mas mais exigente do que era. É por isso (e porque a quantidade ajuda à qualidade) que os funcionários públicos são melhores do que eram, os polícias são melhores do que eram, os cientistas são melhores do que eram, as universidades são melhores do que eram e os cidadãos são melhores do que eram.
As crianças estavam, dirão, mais preparadas para a vida. O próprio ministro diz que estes exames ajudam a aprender a lidar com a ansiedade com que estas crianças viverão na vida adulta. Ajudam? Quantas vezes, depois da escola, o leitor teve de se sentar numa secretária e debitar, por escrito, tudo o que sabia sobre um determinado assunto? Pelo contrário, quantas vezes se sentiu ansioso por ter de falar em público? Por ter de expressar uma ideia mais complicada? Por ter de argumentar? Por ter de negociar? Por ter de criar uma coisa realmente nova? Por ter de aprender a usar uma nova tecnologia? Por ter de mudar hábitos de trabalho? Por ter de interpretar um poema, um artigo de jornal, um impresso das finanças, um manual de instruções?
A velha (e ainda a atual) escola preparou toda a gente para decorar matéria, despejá-la para o papel em 50 minutos e depois esquecer. Não preparou quase ninguém para todas as coisas realmente necessárias na sua vida e na profissão. Porquê? Porque a escola preparava cidadãos acríticos, trabalhadores braçais que apenas tinham de repetir para o resto da vida o que lhes era ensinado e gente que não saísse da norma. Não preparava cidadãos exigentes, profissionais qualificados e uma geração que conseguisse inovar.
Havia, no entanto, exames na 4ª classe. E é compreensível que houvesse. Para a maioria da população, a 4ª classe era o fim dos estudos. Suficiente para ter um ofício. Hoje, o 4º ano cumpre uma função completamente diferente. Felizmente. Nem é o fim dos estudos, nem prepara para outra coisa que não seja para continuar a estudar. Mais: olhamos hoje para um miúdo de 9 anos de uma forma completamente diferente do que olhávamos há 50 anos. Achamos que não deve trabalhar, recusamos a violência física sobre ele, achamos que, sendo a disciplina importante, não chega para formar uma pessoa decente. Há quem tenha saudades doutros tempos? Não vejo como ter saudades de um país servil, atrasado e ignorante.
Desde que Nuno Crato chegou ao Ministério da Educação - mas a coisa é anterior a ele - que vivemos obcecados com avaliações. Rankings, exames finais, exames intermédios. Tudo, menos o que é realmente importante: ensinar, aprender e com isso ir crescendo. Crato está, aos poucos, a destruir quase tudo o que de bom foi feito: o horário completo, a importância das disciplinas mais criativas, o uso de novas tecnologias, o programa de matemática que melhores resultados conseguiu. Mas tem exames para dar e vender. Porquê? Porque para fazer exames não é preciso nada de especial. Basta umas salas, umas secretárias, professores para vigiar e corrigir e um discurso populista e severo para agradar ao povo. Qualquer pessoa consegue chumbar um mau aluno. Difícil é mesmo é criar condições para ensinar quem não consegue aprender.
Não vejo, de muitos professores, a revolta que sentiram com a atabalhoada avaliação que a antiga ministra lhes quis impor. Se fosse demagógico diria que avaliar os outros é sinal de exigência, mas sermos avaliados é uma chatice. Mas acho que a razão é outra: quando estamos nós em causa percebemos as limitações de avaliações burocráticas e uniformes que ignorem o contexto em que trabalhamos. Mas tendemos a esquecer essa dificuldade quando isso nos resolve os problemas que um mau aluno cria numa sala de aulas.
A escola dos exames e dos rankins, a escola que Nuno Crato diz ser exigente, é a mais facilitista de todas as escolas. Massacra crianças com avaliações sucessivas. Não exige nada dela própria. Mas é, acima de tudo, um projecto social com contornos ideológicos bem definidos. A escola democrática ensina a questionar. A escola de uma sociedade que combate a desigualdade aplica-se nos que têm mais dificuldades. A escola de Crato ensina a decorar sem questionar e tem como principal função seleccionar. Não, não é de educação e de ensino que tenho estado a falar. É do país que estamos, aos poucos, a recriar.
(Daniel Oliveira, Antes pelo contrário in Expresso)
Ao ler o sublime artigo de Daniel Oliveira, interroguei-me sobre o significado da palavra "crato". De origem obscura, os dicionários referem que tanto poderá ser uma casta algarvia de uva, como uma espécie de fava preta com a mesma origem, sendo que a fazer fé em correntes linguísticas brasileiras, poderá muito bem ser a "corruptela" de curato, lugar onde mora ou se instala o cura, o padre, ou então pessoa charmosa, amável e expressiva, muito criativa e um tanto curiosa, que terá uma certa dificuldade na concentração e como gosta de compartilhar tudo com os outros é o tipo de pessoa que não conseguirá guardar as suas ideias só para si. Só terá o problema em enfeitar demais a realidade, exagerando na dose e não conseguindo controlar sua verborreia, que acaba por, irremediavelmente, lhe colar a imagem de incorrigível "fala-barato".
Em paz absoluta e com um profundo respeito para com os estudiosos da pátria de Pessoa, aproveito o significado que mais se aproxima da brasa em que pretendo assar a minha sardinha. Para mim, "crato" será mesmo "uma espécie de fava preta de origem algarvia", que lembro muito rija e com sabor esquisito, que sempre me habituei desde pequeno a colocar na borda do prato.
Pois foi exactamente essa fava preta que nos calhou como Ministro da Educação e cuja política Daniel Oliveira tão lúcida e inteligentemente contesta. Em vez de seguir o exemplo civilizado da Finlândia e exigir uma tremenda mas justa responsabilização dos professores, a fava que nos calhou, entendeu regressar à pedra lascada do "estado novo"! Em vez de utilizar o recurso matemático de multiplicar por infinito os degraus da escada que termina no 12º ano, tornando-a num plano inclinado suave e reduzindo os medonhos custos de toda uma parafernália de exames, vai aumentando a altura dos degraus e sujeitando toda uma geração e respectivas envolventes docentes e familiares, a um quase maquiavélico e permanente "stress" de percurso.
Como Daniel Oliveira tão bem encerrou o seu texto, eu também diria que não será de educação que estou a falar. "... É do país que estamos, aos poucos, a recriar!...".
Até breve