O filme da Caixa é o filme de Portugal
«Um tipo é convidado para gerir um grande banco. Pede um mês ao governo para reflectir. Tem um bom emprego noutra instituição financeira, ganha muito bem, está em fim da carreira, embora ainda lhe falte chegar ao topo - ser ele o número um e logo de um peso-pesado, o maior de todos -, e esta apresenta-se como a derradeira oportunidade. O ego diz logo que sim e pressiona, entusiasma-se, mas os riscos profissionais e reputacionais são evidentes. O banco é público, a pressão externa é por isso infinitamente maior, pode ser penosa, além disso as contas estão más, é preciso passar o balanço a pente fino, e o país não ajuda a puxar a carroça para a frente. O vento é contrário e muitas vezes forte. Há ainda o risco de intervenção partidária, uma tentação crónica com raízes antigas na Caixa Geral de Depósitos, embora hoje em menor grau face à actual incerteza económica. Ou melhor, à míngua de dinheiro.
Para evitar que estas pragas bíblicas aconteçam, o gestor - estimado leitor, apresento-lhe António Domingues - fala com um advogado tubarão e com amigos habituados a estes assuntos escorregadios que envolvem o Estado e os seus múltiplo satélites. Concluem todos que, para que ele aceite a oferta de emprego, tem de resolver previamente três pontos essenciais: o salário tem de estar em linha com o que se paga no sector; a estratégia de recuperação do banco e a injecção de capital que é preciso concretizar quanto antes têm de ficar acordadas à partida para evitar conflitos logo no início com o accionista (o Estado) e também com Bruxelas; finalmente, a equipa de gestão terá de ficar isenta de algumas obrigações, tais como o envio da declaração de rendimentos e património ao Tribunal Constitucional.
Qual a justificação para esta última exigência, nada habitual e até estranha, talvez até suspeita? Domingues não quer ver a sua vida exposta nos jornais e nas televisões, a dele e a dos outros administradores que pretende convidar. Exige, por isso, alguma salvaguarda e protecção ao que supõe ser a sua vida privada. Mas aceita enviar a informação para o Banco de Portugal e para a Inspecção-Geral de Finanças, como também aconteceria no privado, além de se comprometer a deixar o dossiê no cofre da Caixa para que possa ser consultado quando for preciso - se surgirem dúvidas.
O ministro que lhe faz o convite - estimado leitor, apresento-lhe Mário Centeno -, depois de reflectir os prós e os contras, aceita as condições, incluindo a última, a mais bizarra. Centeno acredita que António Domingues lhe dá todas as garantias profissionais necessárias para reabilitar um banco em apuros. O banqueiro traz com ele a experiência acumulada no BPI, o que evita o que tantas vezes acontece na Caixa Geral de Depósitos: gestores que vão estagiar para o lugar, alguns sem qualquer experiência na área financeira e até candidamente desprovidos de qualquer instinto empresarial ou sentido económico, o que implica sempre uma elevada factura expressa em negócios sem pés nem cabeça.
O ministro das Finanças acredita ainda que o caminho do banco público tem de ser este e que não há alternativa melhor. Embora fiscalizado pela tutela - o seu ministério - e demais reguladores, Mário Centeno defende que a Caixa tem de ter um estatuto em grande medida equivalente aos concorrentes nacionais e internacionais, porque esta é a única forma de o tornar competitivo, e então decide isentar a administração da CGD do cumprimento do estatuto do gestor público.
A mudança legislativa é feita, passa pelo Parlamento, viaja por Belém e ninguém levanta um único dedo até que Marques Mendes - um bom amigo aqui desta coluna - se pôs a ler o Diário da República, um hábito que ele tem desde os tempos do liceu, e descobriu a pólvora: então António Domingues, além da montanha de dinheiro que vai cobrar (30 mil euros brutos por mês, mais prémios), também estava dispensado de enviar a sacrossanta declaração ao Tribunal Constitucional? O escândalo ainda não parou de acontecer desde esse fatídico dia, mas António Domingues não arreda pé e não cede. E parte do governo, durante uma reunião do Conselho de Ministros, além da bancada parlamentar do PS, já começou a procurar espaço político para reduzir os danos na imagem do primeiro-ministro, inevitavelmente envolvido na confusão. A substituição de António Domingues, se ele entretanto não mudar de opinião - o que pode sempre acontecer, embora pareça de todo improvável -, é então uma questão de tempo e de oportunidade. Talvez a notícia se torne pública a meio de um jogo de futebol ou de um disparate dito por Donald Trump e assim dê um pouco menos nas vistas.
O pior disto tudo é que Portugal funciona assim. Mudam-se as leis, as leis são aprovadas e fiscalizadas mas não excluem outras que se sobrepõe e cruzam, e de repente está montada a maior das confusões no maior banco público. Entre a inflexibilidade de António Domingues, a inexperiência política de Mário Centeno e o oportunismo tosco recheado de demagogia que prospera pelo país, não sei bem como acabará esta história. Provavelmente como uma oportunidade perdida. Certamente como um espelho fiel do Portugal que ainda somos.»
Haverá alguma incompatibilidade entre a extensão do texto desta crónica de André Macedo e as peculiares características que deverão dar forma a um blog. Mas a regra sempre andará de braço dado com a excepção e há matérias que sempre o hão-de impôr. O "filme da Caixa" será um bom exemplo e ainda não me terá sido dado o privilégio de ler outro trabalho com a profundidade e clareza deste. Daí o risco assumido que decidi correr ao publicá-lo aqui. Até porque me poupa a mim a considerações que já comporta.
Tenho muita dificuldade em identificar-me com a candura, ainda que sob o respeitável xaile da amizade, com que AM entrega os louros da "interrupção da gravidez" a uma figura parda e pouco merecedora da minha admiração como Marques Mendes, conhecido que é o seu desprendimento em relação a matérias semelhantes de flagrante colisão de privilégios com a coisa pública. Algo me diz que a inveja ou outros sentimentos ainda menos edificantes, terão estado na origem da "rebelião". E nada me garante ter sido o "ganda nóia" a primeira e a única voz que abalou o silêncio em que decorriam as filmagens.
Mas a rodagem deste filme pouca diferença exibirá com as consequências que naturalmente resultam, quando alguém decide atirar um punhado de lama sobre um potente ventilador: ninguém em redor se poderá gabar de não ficar enlameado! E convenhamos que completamente enlameada terá ficado toda a nata da nossa política actual, desde o vértice da pirâmide, com o mais alto magistrado da nação a sacudir demasiado tarde as pérolas de lama que lhe salpicaram o fato luzidio e bem engomadinho. Daí para baixo, julgo que ninguém terá escapado, do governo à câmara dos nossos representantes e nesta, da direita à esquerda e vice-versa! E cada um com razões mais fortes que o parceiro do lado! O tal "Portugal que ainda somos"!...
Não acredito que António Domingues venha a negociar aquele mínimo de dignidade que um homem jamais deverá negociar, seja em troca do Sol ou mesmo da Liberdade! E depois do macabro filme que sem pudor nos foi dado apreciar, desejo, muito sinceramente, que não o faça...
Até porque, segundo as estrelas, não ficaríamos a perder!...
Até breve