segunda-feira, 30 de outubro de 2017

António Costa terá que mandar fechar os portos!...


O caminho que resta a António Costa para restaurar a confiança perdida
29 Outubro, 2017


«Os últimos dias não deixam margem para dúvidas: durante meses, vamos ter reportagens diárias sobre o atraso na recuperação das áreas ardidas, com deputados da oposição a aproveitarem o maná e os canais de TV a seguir-lhes as pegadas, pelo menos até surgirem as cheias ou outras desgraças. O engodo é irresistível, pois por muito que se trabalhe no terreno, descobrir-se-á sempre alguém que ainda espera, um recanto em cinzas onde a reconstrução não chegou. É só ir lá e montar o arraial. 

Se tiver a noção clara de que a renovação da confiança que o País perdeu na acção do Governo é uma tarefa que nunca poderá concluir-se, António Costa seguirá a sugestão de Assunção Cristas e criará uma "unidade de missão" – ou "estrutura de missão", como prefere Marques Mendes – para coordenar os esforços de regeneração do interior. Mas o descrédito é tão forte e a sanha dos adversários é tão grande, que não bastará a Costa arranjar essa equipa interministerial. Não. Há que lhe encontrar um porta-voz, um bom comunicador que semanalmente – ou a toda a hora – dê conta pública do que foi entretanto concretizado. Cansar a oposição, abusando da TV na exibição sistemática da obra feita, é o caminho que lhe resta. E é se quer.»


No meu modesto entender de cidadão preocupado com o "terramoto incendiário" que quase reduziu o país a cinzas, julgo que muito mal andaria António Costa se porventura ousasse escolher um só dos atalhos que Alexandre Pais (AP) aponta nesta sua recente e estranha crónica. Tal corresponderia, pelas armas que entregaria aos seus inimigos e detractores políticos, a um real e tão óbvio suicídio político, que nem os próprios algum dia seriam capazes de o admitir.

Numa coisa entendo que AP terá absoluta razão: António Costa deverá de imediato riscar da sua agenda, o desgaste a que está a sujeitar a sua própria imagem de 1º Ministro em termos comunicacionais, fazer do seu gabinete, esse sim, o quartel-general da sua acção e entregar ao melhor, arguto e fiel comunicador a missão que até agora julgou erradamente competir-lhe.

Quanto ao que verdadeiramente importará na sua acção futura, aquilo que "irrevogavelmente" lhe poderá permitir a "renovação da confiança que o País eventualmente possa ter perdido na acção do seu Governo", não ficará muito longe do verdadeiro caminho, se for capaz de beber na nossa História, os ensinamentos que por lá encontrará datados de 1755, protagonizados por políticos cuja estirpe se deverá preocupar em imitar nesta hora tão difícil, quanto a que então o país e particularmente Lisboa terão vivido, ocupando o Marquês de Alorna, secundado pelo Marquês de Pombal e o seu inteligente, esforçado e dinâmico séquito de arquitectos e engenheiros, lugar de destaque na prossecução imediata, eficaz e rigorosa  do lema redentor:  "sepultar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos"!...

"Sepultar os mortos" significará sempre e incontornávelmente, que de nada adiantará ficar reclamando e chorando o passado. É preciso sepultá-lo, colocar o passado debaixo da terra. Pouco ou nada valerão as sindicâncias para apurar os culpados, nem adiantará continuarmos a discutir como teria sido a catástrofe se as acções tivessem sido as mais correctas. É preciso enterrar os mortos. E a verdade é que muitos de nós revelamos um prazer quase mórbido e uma enorme dificuldade em enterrar os mortos. Ficamos anos e anos em atitude de um eterno velório. Passada a desgraça que sobre nós se abateu, lembre-se, a primeira coisa a ser feita é enterrar os mortos.

"Cuidar dos vivos" significará que depois de enterrarmos o passado, teremos que cuidar do presente. Cuidar do que ficou vivo. Cuidar do que sobrou. Cuidar do que realmente existe. Fazer o que tiver que ser feito para salvar o que restou da catástrofe. Cuidar dos vivos significará reunir pessoas e bens que sobreviveram à desgraça que nos abalou e reaproveitá-los de forma a servirem para a reconstrução, para o novo. Com energia e muita esperança precisamos, em segundo lugar, de cuidar dos vivos.

"Fechar os portos" significará depois, não permitir nunca mais portas abertas para que os mesmos problemas nos possam vir a afligir no futuro, ou outros parecidos nos venham estorvar a acção, enquanto estamos a cuidar dos vivos e a salvar o que restou da catástrofe.

"Fechar os portos" também significará, necessária e finalmente, que sempre que estamos debaixo da inclemência de uma calamidade,  os nossos adversários e inimigos se aproveitam da nossa fragilidade e eventuais, naturais e humanas desesperança e fraqueza. Se deixarmos os nossos portos abertos, quase pela certa que nos veremos obrigados  a ter que lutar contra os invasores, vampiros e abutres que hão-de tentar banquetear-se com a nossa desgraça...


É por isso que António Costa terá que mandar fechar os portos!...

Até breve

domingo, 22 de outubro de 2017

sábado, 21 de outubro de 2017

Melhor do que procurais é em quem tropeçais (IV-CONCLUSÃO)


DANIEL OLIVEIRA - A ENTREVISTA E O MOMENTO (TOMO IV - CONCLUSÃO)

ML - Ser comentador com tanto reconhecimento como o Daniel é uma responsabilidade mas também um privilégio?

DO - A vida das pessoas ultrapassa aquilo que é o espaço mediático. Ainda assim, tenho a responsabilidade de ajudar a formar opiniões e a criar um pensamento hegemónico. No meu caso, sou um comentador minoritário no espaço público, a contrariar o pensamento dominante. Apesar de não representar o sofrimento das pessoas, devemos dar-lhe voz. Não é sentir por elas, é dar-lhes voz. E é privilégio porque nós todos temos opiniões. Privilégio é eu poder dá-las com grande destaque. Tem de se fazer por merecer todos os dias, apesar de as pessoas pensarem que é só mandar uns bitaites. Sendo generalista como qualquer jornalista, não sou especializado, sei sempre menos do que muita gente sobre cada assunto que escrevo. E nunca, em dois dias, saberei tanto para ensinar alguém. O que eu tento fazer é informar-me para dar uma opinião informada. Já errei muita vez, já escrevi disparates e coisas que estavam erradas, mas fi-lo sempre com a honestidade de tentar saber o máximo sobre aquilo com o tempo que tenho para poder ter uma convição sobre o assunto. Se não tiver, em princípio não escrevo sobre esse assunto.

ML - Disse em 2012 que o seu “boneco televisivo é mais estúpido do que na realidade”

DO - É sempre.

ML - Mas porquê mais estúpido?

DO - Porque a televisão é um meio estúpido. No sentido em que, enquanto falo tenho de pensar na minha postura física, tenho poucos minutos para falar.

ML - Está sempre muito condicionado pela questão do tempo?

DO - Condicionado de uma forma absurda. Absurda não, tem que ser. Mas não há nenhuma ideia sofisticada que possa passar na televisão. A televisão é para picar, para resumir, para dizer umas ideias. Depois, estou condicionado pelo boneco que as pessoas fazem de mim. Tenho as sobrancelhas carregadas, tenho ar de mau e isso marca as opiniões. É, nesse sentido, que o boneco é mais estúpido. Nós somos para o exterior simplificações. Há pessoas que têm uma arte admirável que é parecerem mais inteligentes do que são. Não são assim tão poucas. Eu gosto de acreditar que pareço mais estúpido do que sou. Quando disse isso estava a elogiar-me, não me estava a criticar, estava a dizer bem de mim [risos]. Ou seja, acho que há uma complexidade, uma densidade que o boneco mediático não consegue passar. A televisão não chega para passar, por exemplo, as contradições. Sou uma pessoa contraditória. Acho uma coisa extraordinária. Dos temas que gosto mais são os que não são claros. Temas que são mais estimulantes para a discussão. E são as piores discussões para se ter em televisão onde o que é bom é o preto e branco, prós e contras. Isso é sempre mais redutor. Em geral, as pessoas inteligentes gosto mais de as ler. As superficiais gosto mais de as ouvir, perco menos tempo.

ML - Ainda há muita gente que vê no Daniel Oliveira um rosto do Bloco de Esquerda?

DO - Imensa. Todos os dias recebo comentários do estilo ‘vocês no Bloco'. Saí do Bloco há quatro anos.

ML - Como é que lida com isso? Não o incomoda?

DO - Corrijo. Mas não me incomoda. O Bloco não é, seguramente, uma coisa da qual me arrependa.

ML - O Bloco que deixou há quatro anos é hoje um Bloco muito diferente?

DO - Irreconhecível. Para já, já não conheço muita gente. Depois, esta experiência [a 'Geringonça'] acho que teve algum impacto. Mas ainda há coisas que continuam um pouco iguais.

ML - Como por exemplo?

DO - Continua a ser um partido organicamente muito pequeno. O Bloco é um muito pequeno partido a nível de militantes e médio de eleitores. Isso cria distorções terríveis, cria falta de implantação social. O BE depende muito do voto e é, ainda, um partido muito marcado pelas correntes dos grupos originais, que o fizeram nascer, que é uma coisa já anacrónica e que impede o partido de evoluir mais depressa. O Bloco melhorou depois da minha saída. Não teve nada a ver com a minha saída. Acho que cresceu. A Catarina Martins, ao contrário das minhas expetativas, é uma boa líder. Se o Bloco crescesse e conseguisse ter uma implantação social proporcional à sua implantação eleitoral, aí daria um grande salto. Os tempos não ajudam mas acho que o Bloco nunca fez grande esforço para isso. Mas, ter participado no nascimento do primeiro partido que rompeu com os quatro partidos do sistema político é uma das coisas de que me posso orgulhar na vida.

ML - Passa-lhe pela cabeça voltar a ser dirigente de algum partido?

DO - Não. Só não posso dizer nunca porque qualquer pessoa que se aproxima dos 50 sabe que essa palavra não se usa por uma questão de auto-preservação. A minha convicção hoje é nunca. Sabe-se lá o que é que vai acontecer. Não tenho qualquer vontade de ter vida partidária. Acho que sou útil de outras formas. Apesar de achar que a felicidade é sobrevalorizada, sou mais feliz fora dos partidos.

ML - E mais livre?

DO - Isso sempre fui. Há um lado da falta de liberdade auto-imposta nos partidos que é bonita e comporta alguma generosidade que é, em vez de se dizer tudo o que se pensa, sacrifica-se algumas convicções em nome do coletivo. Isto é compromisso e é bonito. Não desprezo o compromisso. Não me verá a fazer discursos sobre a “carneirada” dos partidos. Acredito que o compromisso é uma coisa fundamental na vida e não acredito nada em pessoas que acham que sozinhas são muito livres. Sozinhos não somos nada livres, somos escravos. Mas, nunca me vi obrigado a defender em partidos coisas em que não acreditava. Várias vezes me calei. Mas nunca deixei de dizer coisas em que acreditava. Nunca me violentei a esse ponto. Nunca deixei que me violentassem a esse ponto. Sempre disse que, em nome do compromisso, sou capaz de deixar de falar em determinado assunto se para mim ele não é uma questão de vida ou de morte. Não como comentador. Isso não o fiz. Foi um dos meus problemas.

ML - Ainda assim, como comentador, nessa altura, tinha de ter alguns filtros?

DO - Não tinha [risos]. Passou a ser muito difícil de gerir. Como comentador tive mesmo de fazer várias vezes o esforço de esquecer que era militante do Bloco de Esquerda. Critiquei o partido várias vezes, quando nem sequer estava na luta interna dele. Provavelmente não teria saído tão rápido do BE se não tivesse a mesma exposição pública. Não é que tenha sido empurrado para fora do partido, mas obrigou-me dentro dele a assumir confrontos políticos que provavelmente não teria assumido. Era uma coisa injusta para mim e, muitas vezes, para o partido. Falava e as pessoas julgavam que era a opinião do Bloco e muitas vezes era contrária à do partido. Era uma posição muito difícil. Seja como for, não foi por isso que saí.

A razão por que não quero voltar a ter atividade partidária é aquela em que passamos a ter de nos preocupar com o que nós pensamos e não o que pensar de nós. Não consigo fazer essa parte do teatro. Sou o oposto do Marcelo Rebelo de Sousa, não consigo fazer aquele número todo sempre tão genuíno. Não consigo treinar tão bem a minha espontaneidade. Não consigo e não quero.

ML - Não quer ser militante de partido algum, mas começou por ser do PCP muito cedo e do Bloco até há pouco tempo.

DO - É uma coisa extraordinária, não tenho perfil de militante e, no entanto, fui militante grande parte da vida. Era de uma família comunista. O meu padrasto era deputado na Constituinte, do PCP, a minha mãe era sindicalista, eram praticamente todos militantes do PCP. As pessoas não têm ideia, mas naquela altura revolucionária não se falava de futebol, falava-se de política. Cresci num caldo político. Via telejornais com 6, 7 anos. Comprava jornais a partir dos 10, 11. Foi influência familiar mas não foi só.

ML - Foi também todo um contexto muito específico...

DO - O contexto e o meu interesse. Interessava-me mesmo muito e genuinamente por política. Fiz a escola de quadros do PCP com 14 anos. Era muito precoce politicamente mas não deixava de ser um miúdo. Precoce mas ali com alguma infantilidade, inocência e ingenuidade. Não estou a dizer que fui comunista por ser ingénuo e inocente.

ML - E saiu do PCP aos 20. O que é que o fez sair?

DO - Que a igreja estivesse contra nós, tudo bem, que o ocidente estivesse contra nós, tudo bem, mas os operários estarem contra nós, já era uma coisa mais complicada na minha cabeça de 14 anos. Começou aí o meu questionamento. Interessava-me por política internacional. Sem saber bem o que isso era, tornei-me eurocomunista, depois, numas discussões internas, comecei a aperceber-me da falta de democracia do PCP. A falta da democracia só se nota quando nós somos contra, quando somos a favor não damos por nada. Comecei a ter confrontos internos e os dois últimos anos já foram a rutura completa. Mantive-me até 89 porque era um corte difícil, era um corte familiar.

ML - E como é que foi a reação da família, tendo em conta que foi o primeiro a sair? ‘Levou nas orelhas’?

DO - Reagiu bem. Foi a vantagem de o divórcio ter sido lento. Como a minha saída demorou, quando saí já não era uma novidade. Aliás, à excceção de três pessoas, acabou tudo por sair.

ML - Quais foram as suas influências?

DO - Foi o meu padrasto, Manuel Gusmão. Foi a pessoa que, aliás, marcou a família. Foi a grande influência, pelo menos na fase inicial, depois as grandes influências foram as pessoas com quem fiz política. Foram sendo pessoas diferentes. Miguel Portas foi a pessoa de quem, depois de sair do PCP, estive politicamente mais próximo durante muito tempo, até à morte dele.

ML - O seu pai, Herberto Helder, nunca quis exposição mediática. Foi fácil manter esse desejo?

DO - Sim. Mas o meu pai nunca mo pediu. Aliás, até me deu jeito. Na fase de afirmação profissional escondi que era filho dele. Quando havia alguém que sabia, pedia para não divulgar. Pode ter sido uma coisa um bocado infantil mas foi importante para, profissionalmente, ter a convicção e a certeza do que o que conseguisse era por mérito meu.

ML - Não quis ser conhecido como o filho de?

DO - Para mim seria uma tragédia. E não era por ser filho de Herberto Helder, era ser filho de. Cada um tem a sua maneira de lidar com estas coisas e a minha é bastante radical. Todos nós nos construímos como pessoas, aos nossos olhos e aos das outras pessoas. Estou-me nas tintas para o que as pessoas pensam, as que não conheço de lado nenhum, não com aquelas com quem trabalho. Sou um ser humano, não sou um sociopata. Era muito importante ter a certeza de que nunca ninguém diria que só faço o que faço porque sou filho de. Hoje ninguém pode dizer isso de mim, tenho a certeza absoluta. Houve imensa gente que só soube que eu era filho do meu pai quando o meu pai morreu, apesar da evidente semelhança física. Mesmo depois da morte do meu pai, continuo a não querer falar da minha vida privada. Só há duas maneiras de expor a vida privada em público: ou através da manipulação ou da pornografia. Manipulação é usarmos a vida privada para as pessoas pensarem coisas boas sobre nós. A pornografia é mostrar não o que queremos que se saiba dela mas tudo.

ML - Como lida com a exposição mediática?

DO - A fama e o sucesso são coisas tão passageiras e irrelevantes que nunca me motivaram. Nunca quis ser famoso, embora nunca o tenha evitado. E a única coisa de que não gosto é não ter direito à minha contradição e aos meus pecados com a vida que tenho hoje. O controlo social. É as pessoas reconhecerem-me. Não é virem falar comigo, isso não me chateia nada. O saber que estou permanentemente sob escrutínio. Na realidade, se pudesse, tinha outra cara na televisão. Era outra pessoa. Eu gosto do anonimato e as probabilidades de pecado reduzem brutalmente. Odeio as virtudes públicas.

ML - Disse que não falava da sua vida pessoal, mas vou arriscar perguntar que memórias guarda do seu pai?

DO - Boas.

ML - Conversavam sobre política?

DO - Não. Era um assunto que não lhe interessava. Para já, o meu pai não gostava de discutir. O jogo argumentativo não era a coisa que mais prazer lhe dava. E não gostava de política. Tínhamos uma espécie de pacto: que as nossas imbirrações não tropeçassem nas nossas paixões.

ML - O facto de gostar de escrever bebeu alguma influência na veia poética do seu pai?

DO - Acho que não. Quando era jovem queria, como todos os jovens de todo o mundo, escrever poesia. Felizmente atirei para o lixo e posso acreditar que era boa porque não tenho como confirmar [risos]. É difícil atribuir isso ao meu pai porque cresci numa família onde se escreve, onde se lê. O problema de falarmos na vida privada, lá está, é que simplificamos. Eu precisava, não de uma entrevista mas de um psicanalista para perceber no que é que o meu pai me influenciou. Quando falamos aos jornalistas da nossa vida privada, construímos um guião. Não é a nossa vida privada porque isso não se resolve numa entrevista. Não é como naquelas entrevistas do outro Daniel Oliveira em que as pessoas conseguem contar, numa hora, a sua vida toda a chorar. Acho uma coisa extraordinária. Eu precisava de meses para contar a minha vida e conseguir chorar com ela [risos].

ML - É um bom desafio para o Daniel Oliveira. Para os dois, neste caso.

DO - Não, não. Não aceitaria. Não gosto do género. Quando quero saber da vida das pessoas que não me são próximas leio biografias, são pessoas que, em princípio, já morreram e que já sabemos como acabou a história. E mesmo essas são um olhar muito parcelar sobre as contradições que as pessoas têm. Confesso que não leio nem vejo entrevistas pessoais. A vida das pessoas não cabe numa entrevista. A relação que tive com o meu pai, com a minha mãe, não cabe numa entrevista. É demasiado complexo e intímo.

ML - Porque é que não foi jornalista de internacional como queria ser?

DO - Porque não tenho talento para línguas. Tinha essa dificuldade, apesar de ser, de longe, o assunto que mais dominava. Mas não conseguia escrever em inglês e isso limitava-me depois no trabalho. É a única coisa de que eu tenho ...

ML - Pena?

DO - Sim. Tenho alguma pena.

ML . Se se tivesse especializado em jornalismo internacional, teria sido agora enviado especial à Catalunha. O que é que mais o chocou na questão da catalã, além da violência?

DO - Provavelmente. O que me choca é a cegueira geral. Choca-me a parte de não se perceber que Espanha tem um problema político que tem que ser resolvido politicamente. Não há um problema de ordem pública. Podem prender as pessoas que quiserem. Espanha tem de ser um Estado federal, tem de corresponder ao que a Espanha é. É um Estado plurinacional e recusa-se a assumir isso. Quer o PP, quer o PSOE. Mais no caso do primeiro, que é herdeiro do franquismo. O PP está-se nas tintas para o que os catalães acham ou não acham. O que me incomoda nesta questão é que toda a gente fala do nacionalismo catalão. Eu não defendo nacionalismos, defendo a autodeterminação dos povos e não é só dos pobres. O que me faz confusão é não se perceber que há uma coisa que é o nacionalismo espanhol muitíssimo agressivo e violento, que esmagou a República em Espanha que impediu que se falassem as línguas nacionais no País Basco e na Galiza. E que ainda hoje está vivo com o mesmo grau de intolerância. Não me ponho ao lado do nacionalismo espanhol que é maioritário e fortemente intolerante. E mais, é o elemento central da identidade espanhola.

A Catalunha foi a única que se conseguiu libertar deste domínio desse esmagamento cultural. Espanha tentou deslegitimar o combate democrático à paulada. O referendo foi um acto político, em que o objectivo era ter um momento de desobediência político que levasse Madrid a mostrar o seu verdadeiro rosto e, com isso, ganhar mais gente para o independentismo. Madrid fez o favor. PP e PSOE podem vir a mudar a Constituição por causa da questão das nacionalidades. Se calhar, a desobediência e a irreverência valeram a pena. Para conquistar coisas é preciso lutar por elas.

(Melissa Lopes, in Vozes ao Minuto)

Creiam todos aqueles a quem fiz "tropeçar" numa das mais singulares, curiosas e categorizadas figuras do todo o pobre comentário político da nossa terra, que foi um privilégio poder fazê-lo. Há muito admirador subjugado ao extraordinário perfil de Daniel Oliveira, entendi, perante esta sublime entrevista de Melissa Lopes, mandar às malvas ou às urtigas alguns dos preconceitos com que o seu pensamento será etiquetado por quem lamenta conhecê-lo, para o mostrar aos que eventualmente o não conhecessem ainda, ou o pudessem confundir com um outro seu homónimo que, talvez nos limites que a sua capacidade permite, por aí andará cumprindo destino bem mais humilde.

Às vezes dou comigo a pensar que Daniel Oliveira não é de cá. Não é português, tão distante o reconheço dos esteriotipados comentadores da nossa praça que, salvo honrosas e dignas excepções, cada vez mais me impõem o redentor "zapping", única granada defensiva a que pode recorrer o espectador violado no seu sagrado direito à informação.

Da esmagadora maioria dos políticos cá do bairro, já não me resta pachorra para falar...

Farto de aventuras, juras, promessas e "dâmasos salcedes tóxicos e dependentes" da caixinha mágica, em verdade vos digo...

Melhor do que procurais é em quem tropeçais

Até breve

Melhor do que procurais é em quem tropeçais (III)


DANIEL OLIVEIRA - A ENTREVISTA E O MOMENTO (TOMO III)

«Admite que não tem perfil de militante partidário, mas foi o que foi desde os 12 anos. Foi militante do PCP até aos 20, não por "ingenuidade", mas porque todos os caminhos - o seu e o da família - tinham esse destino. Mais tarde, militante e dirigente do Bloco, partido do qual saiu há quatro anos. Orgulha-se de o ter ajudado a construir. Hoje, sem qualquer atividade partidária, ocupa um lugar de destaque no comentário televisivo e no escrito, onde, desenganem-se, "não basta mandar uns bitaites". Gosta da contradição.

Daniel Oliveira diz não ser um 'gooder' e alguém que se esforce para "ser gostado". É-lhe completamente indiferente o que as pessoas pensam de si. Não é neutro, nem podia sê-lo. É, acima de tudo, coerente com as suas convicções que, frisa, nunca deixa à porta do trabalho. Só não diz que nunca voltará a ter atividade partidária por uma questão de auto-preservação. "Agora é nunca". Até porque, apesar de a felicidade não ser para si "a coisa mais importante da vida", diz ser muito mais feliz fora dos partidos. 
Olha com desagrado para aquilo que está a acontecer no mundo, em parte, por culpa das redes sociais, que estão a fazer com que se deixe de pensar. "O sorriso das férias em Cancun e a fome em África têm exatamente o mesmo valor. Não há inteligência. E isso só pode causar uma brutal ansiedade", lamenta. 

Da vida pessoal e da família não gosta de falar, porque isso "não cabe numa entrevista". Não quis ser conhecido como o filho de. Isso seria "uma tragédia". Não por ser filho de quem é - Herberto Helder -, mas por uma questão de afirmação profissional.

ML - Estou a falar com o político, comentador ou jornalista?

DO - Eu penso política, intervenho politicamente. Abandonei a vida política quando saí do Bloco, apoiei e envolvi-me na candidatura do Livre nas últimas legislativas. Um político é alguém ou que é dirigente de um partido ou que exerce funções de Estado, eu não faço nenhuma das coisas. Não exerço, não sou candidato a elas, não tenho militância partidária, não tenho qualquer tipo de intervenção política, a não ser aquela que todos os cidadãos devem ter. Participo no debate político, tenho opiniões políticas e não as mascaro de análise. Depois há os outros comentadores políticos que são opinião política fingindo que estão a fazer análises. Dou a minha opinião.

ML - Foi um interesse que começou muito cedo.

DO - Tirando a parte do comentador, que foi uma coisa inesperada na minha vida, a política e o jornalismo acompanham-me desde muito cedo. A política desde os 12 anos, o jornalismo, pelo menos como vontade, antes disso. Decidi que queria ser jornalista na quarta classe e tornei-me aos 18 anos. Entrei para a Juventude Comunista aos 12 anos. São duas coisas que sempre me acompanharam e que eu não acho incompatíveis. Incompatível é fazer jornalismo político e fazer política ao mesmo tempo. E as duas paixões nascem da mesma coisa. O comentário político junta as duas coisas, o gostar de escrever e a política. Nunca quis ser jornalista por gostar de estar numa redação ou por gostar de escrever, apesar de gostar muito de o fazer. O interesse pelo jornalismo é a mesma origem do interesse pela política – o interesse pela coisa pública.

Cresci numa família onde esse interesse também começou muito cedo. Acho estranho é que pessoas que chegam ao jornalismo nunca, antes, se interessaram por política. No jornalismo é que se interessaram pelo mundo? É suposto sermos jornalistas porque nos interessamos pelo mundo. Está a falar com o que sou: comentador, jornalista e um cidadão empenhado com opiniões políticas. Nunca deixarei de ter opiniões políticas.

ML - Enquanto jornalista e opinion maker, preocupa-o a neutralidade?

DO - Não sou neutro. Não sou, nunca quis ser e não tenho interesse nenhum em ouvir pessoas que querem parecer neutras. Não sou uma borboleta, não ando a saltitar nas minhas opiniões conforme o tema. O meu pensamento tem coerência política. Não sou aquele género de comentadores que são de Esquerda numas coisas e de Direita noutras e depois de Centro noutras. O nosso pensamento é coerente, as coisas não estão desligadas. Há pessoas que dizem que em questões económicas são de Direita mas em questões sociais são de Esquerda. Isso é um disparate. As questões económicas e as sociais estão ligadas. Se temos políticas económicas de Direita, o resultado social será aquele que a Direita defende. Tenho um pensamento coerente que não é pré-fabricado.

ML - Que é?

DO _ Considero que aquilo que marca o meu pensamento político, como pessoa de Esquerda que sou, são as questões económicas e sociais que se concentram, sobretudo, na questão da igualdade. Acredito que a riqueza das pessoas não resulta do mérito. Como tal, acredito na igualdade de oportunidades e na redistribuição da riqueza, dentro dos limites que a social-democracia prevê. E defendo os direitos humanos, e isso inclui os direitos das minorias. Essas são as minhas posições chaves. Fora disso tenho posições muitíssimo heterodoxas e que muitas delas irritam a Esquerda porque acha que quando se é de Esquerda tem de se ter o pacote inteiro.

ML - Como o gostar de ir a touradas?

DO - Por exemplo. É a polémica onde acabo sempre envolvido. Ou seja, aquilo que eu disse são os meus dois compromissos. Acrescento um terceiro que corresponde a uma nova geração de políticas que interfere com todos os outros que é a questão ambiental. Assumir que o planeta tem recursos finitos e que o nosso dever é deixar a casa onde chegámos como a encontrámos para os que venham a seguir.

Não deixo de ter estas convicções quando sou jornalista, quando sou opinador, não guardo estas convicções para a minha actividade política. Isto é anterior a qualquer uma das minhas actividades. É o que sou enquanto cidadão. Não consigo perceber as pessoas que têm um pensamento político, uma mundividência, uma forma de olhar o mundo, e acham que na sua profissão isso fica à porta. Não fica. António Hespanha, um historiador, escreveu uma vez um título que repito muitas vezes: ‘O meu trabalho é política’. Fui um ano publicitário, não foi por acaso que só consegui ser um ano. A felicidade é muito sobrevalorizada, a coisa mais importante na vida não é a felicidade – a felicidade é um bem consumível.

ML - Se não é a felicidade é o quê?

DO - A coisa mais importante na vida é nós chegarmos ao fim dela e pensarmos se fez algum sentido andarmos cá. Em princípio não fez. Mas, aquele que possamos encontrar para nós é: ‘eu, na minha insignificância, tornei este sítio onde estou um bocadinho melhor ou pior’. E isso não tem a ver com convicções políticas, tem a ver com o que somos pessoalmente, com a nossa família, noutros sítios, e no nosso trabalho. No tipo de trabalho que faço é difícil medir se ele contribui para melhorar a vida das pessoas. Mas gosto de pensar, pelo menos, que no trabalho sou coerente com o que sou na política.

ML - Mas isso não lhe traz felicidade?

DO - Não é felicidade. É satisfação. Aquilo que realmente é relevante na vida implica demasiado trabalho no meio para estarmos a pensar se somos felizes ou não. Acredito mesmo que se alguma coisa explica a nossa vida é a diferença que fazemos. Não é o sucesso. Isso é uma coisa a que eu não ligo rigorosamente nada. Isso nem sempre traz felicidade. Houve pessoas que fizeram uma enorme diferença nas nossas vidas e que, para fazerem isso, não tiveram essa oportunidade de serem felizes. Pessoas que, por exemplo, viveram em ditaduras. E, no entanto, acho que a vida deles fez mais sentido do que a de outros.

ML - O seu entusiasmo a discutir política é visível a nível físico. Isto é, no Eixo do Mal vemo-lo a dar saltos na cadeira. Essa paixão pela discussão começou quando?

DO - Vou tendo vários tiques. Estou a tentar resolver esse [risos]. A paixão pela discussão nasceu comigo. O entusiasmo faz parte da minha natureza e as pessoas confundem muitas vezes com o ser impulsivo. Não sou nada impulsivo, não sou na minha vida e muito menos na política. Entusiasmo e empenho não significam ser impulsivo. Na minha família materna toda a gente discute política e sempre se discutiu assim, à italiana e com muito empenho.

ML - E chateiam-se?

DO - Durante cinco minutos, sim. Eu sou a ala Direita da minha família. Percebe-se que o espectro político não é muito alargado [risos].

ML - Tem graça ser o mais à Direita.

DO - Pode dizer-se que sou o mais moderado, o mais reformista. Tenho um irmão que é do PCP, passando por outro irmão que é dirigente do Bloco de Esquerda, e, de resto, toda a família alargada, tios, primos, toda a gente discute política.

ML - O que é que numa discussão o tira do sério?

DO - Só me zango com a estupidez. É a única coisa a que, politicamente, sou intolerante e não devia ser. Ela não é distinguida democraticamente e não há maneira como resolver isso. Só me chateio ou com a estupidez ou com a desonestidade. Quando as pessoas dizem que a discussão não vai chegar a lado nenhum. Pois, as discussões não servem para chegar a lado nenhum, servem para as pessoas confrontarem as suas convicções até consigo próprias. Eu era comunista, a maior parte dos meus amigos não era, e eu deixei de ser comunista porque discutia muito. Se não discutisse muito, provavelmente, tinha continuado a ser comunista, nunca me teria confrontado a mim próprio com as fragilidades dos meus argumentos e com a falta de convicção a defendê-los.

Desinteresso-me por aquele demagogo que, num debate, arranja truques. Interrompe como uma técnica para o outro não se ouvir, que arranjou umas frases que sabe que a audiência vai gostar, mas não tem como acreditar nelas. Desinteresso-me porque, felizmente, não tenho de praticar uma política partidária e, portanto, não tenho de ganhar os votos de ninguém, nem sequer o apoio. Acho que em Portugal se discute muito mal política.

ML - Porquê?

DO - Para já, acho que as pessoas se repetem. Devo dizer que, por disciplina, vou lendo o que os outros escrevem, há umas que gosto muito de ler e outras que gosto muito de ouvir, mas evito ser submergido pela banalidade. Tento o retrato geral, o que é que as pessoas estão a ver e depois ir ler as coisas que me interessam. Porque quero contribuir para um debate que não seja a mera repetição do que os outros já disseram. Não é por ser original, é para ser debate. É um fenómeno o que acontece no debate mediático. Ouvimos um ou dois comentadores a dizer uma coisa, depois passamos a semana toda a ouvir outros a repetir ipsis verbis. Não é repetir ideias, é repetir as palavras. Gosto de ouvir coisas novas e tentar dizer coisas que ajudem, de alguma forma, a pensar. Nem que seja pela irritação.

ML - Usa muito essa técnica?

DO - Não. Não uso muito. Sou informal a discutir. Sou um provocador natural, mas não uso a provocação como uma táctica para dar nas vistas. O que veem de provocação minha é natural. Desde miúdo que sou provocador, é uma coisa que me sai naturalmente, mas que não uso como táctica de puxar holofotes ou polémicas inúteis. Porque gosto pouco de ser obrigado a discutir a palavra que utilizei, gosto mesmo é de discutir o conteúdo. Dos momentos que mais me irritam em discussões é quando percebo que fui mal entendido. Pior ainda, quando sinto que as pessoas quiseram mal entender. Escrevi uma vez num texto que "a vida do ser humano mais asqueroso vale mais do que a de um animal".

ML - Foi um texto que se tornou viral nas redes sociais.

DO - Não era um texto leve. Não estou a dizer que era um texto filosófico. A questão central era porque é que nós valorizamos a vida humana. Era um texto que tinha a ver com o facto de considerarmos a vida humana irrepetível. Cada uma. Nós somos portadores de uma coisa que os outros animais não são, que é o livre arbítrio. A liberdade que temos torna-nos irrepetíveis. Era um debate em torno da singularidade da vida humana. Essa frase espalhou-se pelas redes sociais. Até expliquei mais, disse que a vida do Hitler valia mais do que a da minha cadela. Vivermos num tempo em que frases se viralizam é a morte do debate. Ninguém quis saber o que é que eu pensava do assunto. Vivemos – e se calhar contribuo para isso – uma indignação permanente, vazia, histérica e totalmente inconsequente.

ML - É o que mais o aborrece nas redes sociais que tanto usa?

DO - Uso as redes sociais, mas tenho uma página que não me permite ver as redes sociais dos outros. Aquilo para mim é um blog. Não consigo estar a ver o Facebook e saltar em dez segundos do gato querido para as férias nas Canárias, para o aquecimento global, os impostos e o jogo do Benfica, tudo seguido. Não consigo pensar assim e acho que não se pensa assim. Isto é a nova forma de não pensar. Quem quiser continuar a pensar vai ter de continuar a pensar de outra maneira e concentrar-se. Depois, irrita-me a falta de mediação. Não acredito no debate não mediado. Tenho no meu Facebook 3 mil pessoas bloqueadas. Acredito ferozmente na liberdade de todos falarmos, nem todos temos o direito de ser ouvidos. Quando se vê nas caixas de comentários dos jornais 80% dos comentários são insultos sem qualquer conteúdo político, a textos, por exemplo, de opinião, percebe-se que não é debate. Acho que nunca debatemos tão pouco.

As redes sociais trouxeram vantagens, permitem que eu possa ler pessoas que nunca leria nos jornais, tenho acesso a informação que nunca tive. Acho que todas as coisas novas trazem o inferno e o paraíso juntas. Há um lado nas redes sociais que eu não suporto que é a histeria. Acho bem que as pessoas se indignem mas não se indignem todos os dias com tudo. Que não utilizem a palavra ladrão, ou cambada, e outras, com toda a gente, a todo o momento. E que não escrevam nada que não fossem capaz de dizer.

ML - Provavelmente indignamo-nos todos os dias nas redes sociais e depois na rua nem uma vez por mês.

DO - Há pessoas que me insultam e depois na rua são de uma enorme simpatia. Mas isso é hipocrisia e eu até sou a favor da hipocrisia. O meu problema com quase tudo é a inconsequência. Não há maior pecado que a inconsequência. Todos nós, eu incluído, somos contraditórios e não fazemos na vida o mesmo que apregoamos. É muito difícil. Não queria viver com alguém que fizesse da sua vida aquilo tudo que dizia. São pessoas planas e aborrecidas. Devemos ser consequentes e as palavras são importantes. As pessoas despejam palavras sem sentido, que não pensaram, que não querem saber. E uma das razões é que provavelmente nem todas as pessoas estão habilitadas a escrever. As opiniões não valem todas o mesmo. 90% das coisas que eu vejo nas redes sociais não mereceram o tempo que eu gastei com elas. Pergunto muitas vezes a quem deixa comentários se leu o texto. Respondem que não. Então porque é que me obriga a ler o seu comentário se não perdeu tempo a ler o meu texto?

Para além de terem o direito de falar, as pessoas precisam de merecer ser ouvidas. Merecer ser ouvido significa empenharem-se. Vivemos numa fase de inconsequência e numa brutal crise de mediação e estamos a pagar esse preço. O jornalismo serve para mediar. A realidade não é compreensível por si só. Se receber agora toda a informação que existe no mundo, toda ao mesmo tempo, provavelmente tenho um ataque cardíaco. A realidade sempre foi apreendida de uma forma organizada. As redes sociais são absolutamente disruptivas desse ponto de vista porque nos dão informação totalmente desorganizada onde tudo vale o mesmo. O sorriso das férias em Cancun e a fome em África têm exatamente o mesmo valor. Não há inteligência. E isso só pode causar uma brutal ansiedade. As pessoas estão brutalmente ansiosas. Tenho a sensação todas as semanas que o mundo acaba e isto já está a ter repercussões políticas. Acho que há razões para ter medo e que estão a acontecer coisas assustadoras no mundo. Estamos a perder todos os instrumentos de mediação, os jornais, os partidos políticos, o Estado – não acredito em democracia sem nações, o fim da soberania de um país é o fim do Estado. Isto tem limites, não é um caminho sem fim, não é possível viver assim. E um momento de rutura pode levar-nos a lugares bem assustadores.

ML - Quão próximo estamos dessa rutura e desses lugares?

DO - Já temos o Trump. Estamos lá mesmo em cima. Acho que há muita gente que não está a perceber o que está a acontecer. E começaria pelos da minha profissão, os jornalistas. Se eu deixar as redes sociais e ligar a televisão e vir um directo, a minha ansiedade diminui? Não. Aumenta. Infelizmente, a informação não vem mais seleccionada. Fazer directo, hoje uma coisa tão valorizada, é o contrário do jornalismo. O jornalismo só é deferido. Quando é directo é o câmara. O jornalista ali é só um mestre de cerimónias.

ML - Como é que faz para se refugiar dessa ansiedade toda?

DO - Sou cirúrgico. Não me mantenho alheado porque é o que eu faço. De manhã vejo as newsletters dos jornais nacionais, vejo os internacionais, escolho um tema, e é sobre ele que escrevo. Escrevo comentário todos os dias e às vezes sou o único cá em casa que não sabe que aconteceu determinada coisa. Não quero ser infectado pela ansiedade porque ela nos impede de pensar. Faço comentário todos os dias, estou em cima do acontecimento, tenho de me proteger ainda mais da falta de perspectiva. Há uma coisa que eu não faço, não sou carpideira de serviço. Hoje, os jornalistas são todos carpideiras. Querem traduzir na televisão o que as pessoas estão a sentir em casa porque querem ser gostados. Um político também tem de fazer isso. O meu papel não é esse. O meu papel não é dizer às pessoas o quão emocionado estou.

ML - Era isso que não suportava na política?

DO - Era.

ML - E foi o que levou a sair dela?

DO - Foi por outras razões. Mas devo dizer que não sou um 'gooder', uma pessoa boazinha, não sou a pessoa que diz aquela frase no momento, que, agora nos incêndios, fica 10 minutos antes a pensar na frase certa. Não me importo nada que as pessoas não gostem de mim, não quero ser popular. Fico às vezes até estarrecido como me é totalmente indiferente.

ML - Sobre o que pensam de si?

DO - Sobre mim é, sobre o que eu penso, não. Como figura pública só existo nas minhas opiniões. É tudo o que interessa. Não quero saber se as pessoas acham que sou bom, mau, que gosto muito da minha cadela, que sou um óptimo marido. Não me interessa. As pessoas querem cada vez mais saber o que os politicos sentem e não o que pensam. A mim não me interessa para nada saber o que Marcelo e o António Costa sentem. Não aguento mais esta coisa que parece ser sentimento e não é mais do que o negócio da dor. Da dor, da alegria, é um negócio. Cada pessoa que vai para a televisão vai fazer o número para demonstrar que está a sofrer tanto quanto os outros...»
(Melissa Lopes, in Vozes ao Minuto) (Continua)
Farto de aventuras, juras, promessas e "dâmasos salcedes tóxicos e dependentes" da caixinha mágica, em verdade vos digo...

Melhor do que procurais é em quem tropeçais

Até breve

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Melhor do que procurais é em quem tropeçais (II)



DANIEL OLIVEIRA - A ENTREVISTA E O MOMENTO (TOMO II)

«ML - Sobre as eleições autárquicas, que leitura pode ser feita dos resultados? Poder-se-á considerar que os resultados, do PS, PCP e Bloco mostram que apenas o PS está a ganhar com a actual solução governativa?



DO - Depois de Pedrógão, os comentadores políticos falavam que tínhamos entrado num novo ciclo político e que o PS estava em maus lençóis, mas depois teve uma vitória retumbante. Depois das eleições, passou-se a dizer que o PS iria ter [nas legislativas] maioria absoluta. E agora, depois desta tragédia, já se diz que Costa está acabado. É preciso de ter um bocado de calma a analisar os ciclos políticos e não tentar descobrir momentos históricos nos próprios dias históricos. É preciso ter calma com os futurismos.


A leitura que faço das eleições autárquicas, para além das leituras locais que são muito diferentes, é que as pessoas estão satisfeitas com a situação económica e social. Estando satisfeitas, tendem a atribuir ao Governo o resultado da sua satisfação e têm alguma razão para isso. É verdade que o Bloco e o PCP conseguiram muitas coisas, mas, não estando no Governo, é ingénuo pensar que se fica com os louros do que é bom e proteger-se, ao mesmo tempo, do que é mau. O Bloco e o PCP quiseram tanto proteger-se do que pudesse correr mal que se protegeram do que correu bem. Acho que isto não atinge tanto o Bloco. Já achava isso há um ano, que o PCP estava muito mais exposto que o Bloco.

ML - Mais exposto como?

DO - Primeiro, porque o PCP tem menos capacidade de adaptação, de conseguir surfar numa situação difícil, tem um barco maior que custa mais a virar a cada momento. Depois porque o eleitorado do PCP, do ponto de vista social, é o que mais tem beneficiado da reposição dos rendimentos – reformados, funcionários públicos. Portanto, é aquele que provavelmente está mais satisfeito com a Geringonça. Por outro lado, o eleitorado do Bloco é mais jovem, tem mais eleitorado do setor privado, mais eleitorado precário que ainda não sentiu de uma forma tão profunda os benefícios do que está a acontecer. Junta-se a isto o facto de PCP e o Bloco terem um discurso - mais o PCP – contrariado.

ML - O que quer dizer com discurso "contrariado"?

DO - Enquanto o seu eleitorado está satisfeito com esta solução, os dois partidos quase que pedem desculpa por estarem nesta solução. Estão sempre a dizer que este não é o seu Governo. Ou seja, a mensagem que passaram aos seus eleitores faz com que estes não lhes atribuam, injustamente, os bons resultados económicos e sociais que este Governo está a conseguir. Têm responsabilidades mas parecem não querer assumi-las. A única forma de as assumirem por completo era entrarem para o Governo e isso, infelizmente, não vai acontecer.

O que me está a assustar é o que está a acontecer, sobretudo, do lado do PCP. Enquanto o Bloco decidiu assumir de uma forma mais clara essa solução - em Lisboa, por exemplo, disponibilizou-se para construir uma geringonça - partes do PCP não. As greves que foram anunciadas e a manifestação por parte da CGTP, que são deslocadas no tempo. Não é fácil iniciar um processo de luta na Função Pública no preciso momento em que as carreiras são desbloqueadas. Ou seja, temo que o relógio, o alarme da Soeiro Pereira Gomes tenha soado na Vitor Cordon e acho que isso enfraquece o movimento sindical. É demasiado evidente que foi agenda eleitoral do PCP que determinou a estratégia de alguns setores da CGTP.

Acho preocupante e mau para o país que os sindicatos não tenham autonomia face ao Governo. Acho bem que os sindicatos lutem contra este Governo, que lutem contra as autarquias do PCP quando estão em causa direitos dos trabalhadores. O que me faz confusão é que não o façam durante dois anos quando julgam que o PCP está a tirar vantagens da 'Geringonça' e mudem de estratégia no dia em que se percebe que o partido está a passar por dificuldades. Precisamos de um movimento sindical forte e autónomo das estratégias eleitorais dos partidos. Em relação ao Bloco, apesar de tudo, acho que tem uma situação mais confortável. Se houver um novo ciclo político, veremos como é que os partidos estão nesta situação.

ML - Que arestas da 'Geringonça' ainda estão por limar?

DO - Não são arestas. É um diamante, uma pedra em bruto. Não há um programa comum. O programa que existia era de urgência que tinha a ver com a reposição de rendimentos e que foi, na realidade, praticamente cumprido. Desde há um ano que vivemos numa situação um pouco estranha em que o PCP e o Bloco são uma espécie de oposição construtiva que mantém o Governo em funções. E isso não é saudável. Deveria haver um novo acordo – há coisas em que sabemos que PS, BE e PCP nunca chegarão a acordo, mas há muitas em que podem chegar.

Há, diria, três áreas muito sensíveis. Uma tem a ver com a questão do trabalho, não tem a ver com Orçamento, sobretudo com a contratação coletiva. Acabar com a contratação coletiva é acabar com o sindicalismo e com a negociação no setor privado. Podemos decidir que o futuro do país não são salários baixos e que temos de combater a desigualdade que, depois, se não permitimos que haja os instrumentos de negociação para que isso também aconteça no setor privado, na realidade estamos só a mexer no setor público, nos impostos e nos reformados. Ora, nesta área o PS não quer mudar e não querendo mudar acho que trai o espírito da 'Geringonça'. Não há nenhum entendimento à Esquerda que não passe ou não tenha de passar pela questão laboral, não pode haver um entendimento à Esquerda que não tenha a questão da dignidade do trabalho e a redistribuição dos rendimentos como uma questão central na sua política.

A outra área tem a ver com a precariedade e os recibos verdes. É trágico que neste OE os únicos trabalhadores maltratados sejam os dos recibos verdes, é um péssimo sinal. Vão ficar a pagar muito mais, vão ter o maior aumento de impostos da sua história. Este Governo mexeu na precariedade na Administração Pública e ainda não fez rigorosamente nada na precariedade do setor privado. Sobretudo os falsos recibos verdes são o faroeste das relações laborais. Há uma parte muito grande da população para quem estas alterações que vão sendo feitas, todos os direitos, não existem. Isto cria uma clivagem no país e a sensação de dois mundos que não se tocam e legitima-se o discurso da Direita sobre um setor público protegido.

Depois, a questão do investimento público. Vai haver mais investimento público. O que me preocupa é que o Bloco e o PCP não participem nesse debate. Comportam-se um bocado como partidos reivindicativos em relação a direitos das pessoas, e bem, mas Bloco e PCP não são sindicatos, são dois partidos. Para lá dos direitos das pessoas, Bloco e PCP têm que se preocupar com o futuro do país. Não há programa de Esquerda para a mudança na nossa economia que não se concentre no debate sobre onde é que vai haver investimento público e para quê. Gostava de ver a 'Geringonça', e não exclusivamente o Governo, motivada para fazer esse debate. Bloco e PCP ainda não deram esse passo de responsabilização.

Estes são exemplos de como a 'Geringonça' não tem arestas para limar, é em si uma grande aresta que funciona porque, enquanto em toda a Europa assistimos a uma regressão civilizacional e perda de direitos, Portugal é o único país onde ou estabilizamos ou evoluímos.

ML - E quem é que poderá ‘saltar fora’ primeiro desta solução governativa?

DO - Ninguém. A 'Geringonça' vai durar até às próximas eleições legislativas, a não ser que aconteça qualquer coisa na Europa, a Geringonça vai manter-se. O diabo não parece que venha, a Direita, à falta do diabo, agarrou-se ao fogo, mas não chega. O PSD vai estar fechado para remodelação e não há nenhuma razão para que a 'Geringonça' falhe. E toda a gente sabe que o primeiro a largar a corda sofrerá as consequências.

ML - Nessa remodelação do PSD, Rui Rio ou Santana Lopes? Quem dos dois está em melhores condições de pegar no partido?

DO - Se não tivesse onde gastar o dinheiro, apostava na vitória interna de Santana Lopes. Tem mais ligação à estrutura, aos interesses dentro do PSD, mobiliza mais facilmente os Relvas desta vida. Santana tem melhores condições para vencer a liderança, o que será um sossego para António Costa. Santana Lopes é um caso extraordinário do eterno derrotado em quem as pessoas veem uma excelente pessoa para vencer. Perdeu três eleições internas dentro do PSD, quase todas de forma humilhante. Deu uma maioria absoluta ao PS no país. Na realidade, só ganhou uma vez uma eleição, em Lisboa, para João Soares. E quem acompanhou de perto sabe que foi João Soares que a perdeu. Santana será uma escolha que funcionará dentro do partido. Não mexerá muito nas estruturas, herdará as de Passos. O conservadorismo aqui, mesmo quando se está mal, costuma funcionar.

Rui Rio é uma incógnita para o PSD e, naturalmente, causa mais receios. Para o país também é uma incógnita. Acho que tem preocupações ao centro político com um perfil autoritário, muito mais autoritário que Cavaco Silva. Rui Rio tem mesmo tiques de tiranete e, quem acompanhou o que ele fez no Porto, sabe-o. Se ignoramos o que é bom para o país, é o melhor candidato para o PSD porque, pelas caraterísticas que tem, tem um discurso que chega mais facilmente a um eleitorado cansado, desiludido, até a um eleitorado de Esquerda. É mais transversal e, portanto, um maior risco para António Costa.

ML - E que efeitos terá esse maior risco na atual solução?

DO - Tudo o que seja um risco para António Costa, é bom para a 'Geringonça'. Porque retira a autoconfiança ao PS e obriga-o a ficar mais dependente do PCP e do Bloco. Tudo o que signifique manter o equilíbrio instável na 'Geringonça' acho que é bom para o país, porque significa que teremos um Governo mais ancorado à Esquerda.

Nesse ponto de vista, o desafio de Rui Rio é capaz de ser preferível para o país. O debate político é que vai ser deprimente no PSD. Vai-se discutir táctica, vai-se discutir fait-divers – aquilo em que Santana Lopes é especialista. Rui Rio também não é propriamente uma pessoa com uma enorme elegância programática. Vamos ter aquela política levezinha, que é boa para fazer notícias, mas que não é muito boa para discutir aquilo de que o país precisa. Se me dissesse que Santana era de Esquerda, eu acreditava [risos], se me dissesse que era da Direita conservadora, também acreditava. Porque ninguém lhe conhece grandes convicções políticas. Tem boas jogadas, diz umas coisas. Costa merecia do lado do PSD um político igualmente tenso. O problema é que o PSD tem uma crise de quadros. Quando um dos grandes ideólogos do PSD é Marques Mendes, estamos conversados. Hoje o CDS tem mais inteligência política. Os jovens mais à Direita, mais interessantes, tendem a ir para o CDS e não para o PSD.

ML - Por que razão está isso a acontecer?

DO - Porque o PSD é um partido de caciques. Um partido que se está a ruralizar, num país que não tem mundo rural. Está a perder força nos centros urbanos e não tem uma marca política clara. O PSD sempre foi uma coisa estranha, um objeto estranho no conjunto da Europa. Chama-se Partido Social Democrata mas que é um partido de centro Direita – coisa que não acontece em mais nenhum país europeu. Olhamos para o PSD hoje e não temos facilidade em encontrar quadros políticos que possam vir a ser líderes e não só. Desse ponto de vista, é um partido muito frágil e não sei quanto tempo demorará a reencontrar-se.

O PSD tem o seu panteão político cheio de derrotados. É o Santana Lopes, o Marques Mendes. Figuras que foram derrotadas várias vezes e que são as referências no partido. Não que a derrota seja uma vergonha. Só perde quem tenta Mas é um bocado estranho. A última figura de referência que o PSD teve foi Cavaco Silva...»
(Melissa Lopes, in Vozes ao Minuto) (Continua)


Farto de aventuras, juras, promessas e "dâmasos salcedes tóxicos e dependentes" da caixinha mágica, em verdade vos digo...

Melhor do que procurais é em quem tropeçais

Até breve

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Melhor do que procurais é em quem tropeçais (I)


DANIEL OLIVEIRA - A ENTREVISTA E O MOMENTO (TOMO I)

Daniel Oliveira. Jornalista e comentador. 'Transpira' política por todos os poros - ou não fosse, justamente, a discussão da política o seu trabalho. É um dos opinadores com maior notoriedade no espaço mediático. Um papel que assume com inegável entusiasmo, mas nem por isso olvidando o sentido de responsabilidade. A conversa não podia esquivar-se da actual situação política, irremediavelmente marcada pela tragédia dos incêndios e a consequente crise no Governo.

A entrevista decorre sensivelmente uma hora depois do anúncio da demissão da ministra. A novidade do dia que, afinal, já não a era para Daniel Oliveira. Bastou-lhe um telefonema para saber, antes do discurso de terça-feira do Presidente da República, que a ministra iria ser demitida (ou demitir-se). Só faltava decidir se seria anunciado na sexta-feira ou no sábado. Foi antes. O timing do anúncio, defende, foi impulsionado pelo discurso presidencial.

De uma coisa está certo: "Marcelo deu vários chutos numa bola que já estava dentro da baliza e gritou golo" para, com isso, "ganhar força política". Em matéria de incêndios, como noutras, garante não se comover com o "jogo político". Interessa-lhe antes discutir aquilo que ninguém parece querer discutir - "o modelo de desenvolvimento que queremos ter". Se se centrar o problema apenas em demissões, antevê, as tragédias vão continuar ao longo de décadas.

Conhecido o substituo de Constança Urbano de Sousa - Eduardo Cabrita - comenta que esta foi uma "péssima escolha", porque "a remodelação tinha de servir para reforçar o núcleo político do Governo, numa fase que vai ser difícil" e "não é, seguramente" o ministro Adjunto que o fará, entende.

Quanto à moção de censura apresentada pelo CDS? Foi algo "macabro" que nasce da "excitação" dos resultados eleitorais e de quem não percebe que há assuntos "que têm de ser tratados com pinças". Com este 'tiro no pé', quem saiu a ganhar, analisa Daniel Oliveira, foi Costa e a Geringonça. Com o PSD "fechado para remodelações", não há forma de esta solução governativa falhar, conjectura, apesar de apontar falhas ao trio de partidos.

Melissa Lopes (ML) -É inevitável começar por falar dos incêndios. Constança Urbano de Sousa acaba de anunciar a demissão e na carta escreve que já havia decidido demitir-se, "insistentemente", depois da tragédia de Pedrógão.

Daniel Oliveira (DO) - É evidente que a ministra já tinha decidido que se ia demitir. Mas o que é que Costa ia fazer? Demitir a ministra e todo o Ministério da Administração Interna a meio dos incêndios? Ia escolher um ministro novo a meio dos incêndios? Não podia. As pessoas que sabem como estas coisas funcionam já sabiam que a ministra não ia ser demitida antes do fim dos fogos, que deveria ter sido no princípio de Outubro. O que acho extraordinário é a quantidade de pessoas que souberam que a ministra iria ser demitida antes do discurso de Marcelo. Se eu soube, houve muito mais gente a saber. Bastou-me um telefonema. Não é propriamente uma coisa muito secreta que o Governo ia demitir a ministra.

ML - Estava por horas.

DO - Não é estar a pensar em demitir. Eu telefonei e perguntei ‘a ministra vai ser demitida?’. Responderam-me: ‘sim, só não sabemos se vai ser anunciado no sábado ou na sexta’.

ML - Era completamente inevitável que fosse demitida?

DO - Claro. É ouvir a intervenção de Carlos César à tarde para perceber. Carlos César praticamente disse que ia ser demitida. Marcelo percebeu que Constança Urbano de Sousa ia ser demitida e exigiu a demissão da ministra. É Marcelo no seu melhor. Tenho uma boa relação com Marcelo, até foi ele que apresentou o meu livro, mas as pessoas estão tão enganadas em relação ao Marcelo dos afectos...

ML - Então, que Marcelo temos?

DO - Marcelo é um calculista. Hiper calculista. Enquanto Costa diz coisas que as pessoas não gostam, Marcelo não. É vinte vezes mais espontâneo Costa do que o Marcelo. O primeiro-ministro diz coisas que irritam as pessoas. Marcelo nunca diz nada que não tenha preparado.

ML - A ministra Constança Urbano de Sousa é a responsável política por aquilo que aconteceu, mas terá de haver outros responsáveis. Depois de Pedrógão, para muitos era certo que aquela tragédia não ia e não podia acontecer outra vez, muito menos quatro meses depois.

DO - Eu não tinha nada como certo.

ML - Mas é inacreditável que tenha acontecido outra vez.

DO - É surpreendente. Não é inacreditável. O que me preocupa é as pessoas acharem que não pode voltar a acontecer. É porque não perceberam porque é que aconteceu. Nós sabemos exactamente o que falhou. Há um relatório, que foi encomendado e que ninguém leu porque as pessoas estão interessadas no jogo político em torno do que aconteceu. O relatório da Comissão Independente explica exactamente o que é que aconteceu e o que é que falhou. O lado mais evidente de falha directa tem a ver com a Protecção Civil. Só tem a ver com a ministra no sentido em que foi ela quem nomeou metade da Protecção Civil. O relatório não fala propriamente da qualidade das pessoas que foram nomeadas, mas sim do facto de terem sido nomeadas, mais ou menos ao mesmo tempo, numa altura muito próxima dos incêndios e que isso reduziu a capacidade de reacção e coordenação. Isto é a parte circunstancial e que tem de ser mudada rapidamente. Tudo o resto é estrutural.

ML - O desordenamento do território?

DO - O brutal desordenamento do território. Somos basicamente o país que tem umas cidades rodeadas de território quase selvagem que quase não tem pessoas, em que as coisas crescem e ninguém trata delas. Temos a estrutura da floresta com a menor parcela média de dimensão de propriedade – minifúndio –, somos dos países da Europa com maior propriedade privada de floresta. E é impossível, na actual estrutura de propriedade da nossa floresta, fazer qualquer tipo de gestão de limpeza. As pessoas não têm dinheiro nem forma de manter limpo o que têm.

Sabemos, também, que o facto de haver muitos incêndios faz com que as pessoas, por racionalidade económica, prefiram ter eucalipto e pinheiro que ao fim de dez anos dá lucro do que arriscar ter uma propriedade que vai arder e que não vai ter qualquer viabilidade económica. Não vale a pena criar inimigos fáceis. A questão da floresta é a questão do país. Tem a ver com o nosso desenvolvimento, com o despovoamento de grande parte do país. O que está em causa é enorme.

Junta-se a isto uma coisa que ninguém quer falar porque é muito desconfortável falar, que também vem no relatório, e que aborrece as pessoas. Os nossos bombeiros não têm formação. Isto é horrível de se dizer porque andam pessoas corajosas e generosas a combater o fogo. Mas temos uma estrutura de combate ao fogo baseada no voluntariado, com poucos bombeiros profissionais e voluntários com pouca formação. E a estrutura de direcção dos bombeiros totalmente partidarizada.

ML - Porque é que isso acontece?

DO - Quem sabe como as dinâmicas locais funcionam sabe que não há cacique local que, sendo presidente da câmara, não tenha passado ou vá passar para a direcção dos bombeiros. Os incêndios são o espelho do que somos enquanto país e de todos os erros que cometemos nos últimos 40 anos. Junta-se ainda mais uma coisa que, uma pessoa diz e parece que fica toda a gente chocada - as alterações climáticas. Estas não aparecem só nos documentários. Se uma pessoa fala das alterações climáticas para explicar o que aconteceu, dizem que se está a arranjar desculpas. Não. As alterações climáticas existem e nós somos o país da Europa, talvez, menos preparado. Vamos ser os primeiros a senti-las de uma forma muito forte. É muito mais difícil hoje planear a prevenção e combate aos fogos porque pode acontecer, por exemplo, a meio de Outubro termos o clima que temos. Isto é o que é estrutural.

Que a ministra cometeu imensos erros, cometeu. Que tinha de ser demitida, tinha. Que a Protecção Civil respondeu pessimamente, respondeu. Tudo isso é verdade. Agora, dizerem que não estavam à espera que acontecesse outra vez... Mas como? Mudou alguma coisa? Vai mudar alguma coisa nos próximos dois anos? Nos próximos três anos? Não vai.

ML - Mas era bom que qualquer coisa mudasse e é isso que se espera.

DO - Como? Não é possível. O que a mim me assusta é as pessoas pensarem que [a mudança] podia acontecer em meses. E isto é desculpabilizar o Governo? Não.

ML - Este Governo e os anteriores.

DO - Sim, aliás, António Costa foi ministro da Administração Interna e, já agora, Assunção Cristas que foi ministra da Agricultura têm responsabilidades. Mas está tudo convencido de que com um pedido de desculpas de Marcelo Rebelo de Sousa e uma demissão de uma ministra fica tudo resolvido. [Pensar assim] quer dizer que, não só vai acontecer nos próximos anos, como vai voltar a acontecer nos próximos dez e nos próximos 20. Se se acha que o problema é esse, então não vamos fazer nada. Aliás, vê-se na comoção das pessoas em frases como: "nada pode ser como antes". Alguém andou a discutir a reforma da floresta? Alguém perdeu tempo, mesmo depois de Pedrógão, a discutir a sério a reforma da floresta apresentada?

Comovo-me muito com o sofrimento das pessoas que perderam familiares e amigos e perderam tudo o que tinham, comovo-me muito pouco com a comoção nacional. Acho que estamos viciados nestes momentos mediáticos que daqui a 15 anos ninguém se lembra. Por isso é que o debate sobre a ministra me mobiliza pouco. Sobretudo, o facto de o Presidente da República ter aproveitado o momento para ganhar alguma força política, demitindo uma ministra que já se sabia, pelo menos quem quis saber, que estava demitida, também não me interessa especialmente. Não acho motivante este tipo de jogo político. Interessava-me discutir o modelo de desenvolvimento que queremos ter e não parece que as pessoas queiram discutir isso.

ML - O que é que se ganha em não anunciar a demissão de uma ministra logo que a decisão é tomada?

DO - Entre o momento em que se decide demitir uma ministra e o momento em que é anunciada a demissão da ministra costuma passar algum tempo, não costumam passar minutos. Não tenho nenhum problema em dizer que soube que a ministra ia ser demitida antes de Marcelo Rebelo de Sousa falar e que iria ser anunciado na sexta ou no sábado. O mais normal seria ter sido anunciado no Conselho de Ministros extraordinário.

ML - O discurso de Marcelo teve então uma influência no timing do anúncio?

DO - Provavelmente o que o discurso de Marcelo fez foi precipitar o anúncio da demissão. Ora, era tudo relativamente previsível. Que a ministra não tinha condições para ficar já toda a gente sabia. Que a ministra não podia ter sido demitida antes é de uma evidência que me espanta ouvir pessoas com responsabilidades políticas a pedir que a ministra se demitisse no Verão. Por mais incompetente que seja um ministro, isso passa pela cabeça de alguém reestruturar o MAI no meio dos fogos? As pessoas já sabiam que desde Pedrógão a ministra estava demitida. Estava demitida, seguramente, depois do segundo relatório da Comissão Independente, onde lhe são atribuídas responsabilidades políticas. Acredito que foi como ela diz, que pediu a demissão várias vezes. Basta olhar para as condições emocionais e políticas que tinha para imaginar que se quis demitir. Mas é evidente que não podia sair antes do fim do Verão. 

Mesmo em relação ao facto de o Presidente querer que o Parlamento reafirme a confiança ou não no Governo, também o fez depois de o CDS apresentar uma moção de censura, sabendo que o Parlamento o ia fazer. As pessoas gostam. E eu também gosto, da arte de Marcelo. Marcelo deu vários chutos numa bola que já estava dentro da baliza. E gritou golo. Acho que tem talento para isso e o talento na política não é um defeito, é uma virtude.

ML - Faz sentido a moção de censura apresentada por Assunção Cristas?

DO - Acho macabro. Um partido para ganhar a liderança da Direita quando sabe que o PSD está num vazio de poder, e vem de uma dinâmica de vitória das autárquicas, para marcar a sua liderança da Direita, apresentar uma moção de censura um dia depois de os fogos estarem extintos, quando os funerais ainda nem sequer aconteceram.

ML - Ainda assim, considera que a moção pode fragilizar a 'Geringonça' de alguma forma?

DO - Não, pelo contrário.

ML - Vai sair reforçada?

DO - Sendo a moção apresentada, ainda por cima, pela antiga ministra da Agricultura que não fez rigorosamente nada que se conheça para melhorar a situação da reforma da floresta, sendo apresentada no momento em que foi e sendo tão evidente o objectivo político da moção de censura, vai ajudar a actual solução. A moção de censura é a melhor maneira de unir os partidos da 'Geringonça'. É um favor que o CDS fez a António Costa porque permitiu que, num momento de fragilidade, o primeiro-ministro e a 'Geringonça' se mostrassem reforçados. Depois de um momento bastante difícil para Costa, o CDS deu-lhe uma vitória garantida.

ML - Foi um autêntico tiro no pé?

DO - É a excitação de quem acabou de ter bons resultados nas eleições e que não percebe que há assuntos em que é preciso ter pinças e que as jogadas políticas devem ser muitíssimo bem pensadas. Esta eu acho que foi muito mal pensada. O CDS facilitou a vida à Geringonça fazendo com que se reafirmasse num momento de dificuldades. E isso Jerónimo de Sousa e Catarina Martins vão ficar a dever durante muito tempo a Assunção Cristas.
(Melissa Lopes, in Vozes ao Minuto) - (Continua)


Farto de aventuras, juras, promessas e "dâmasos salcedes tóxicos e dependentes" da caixinha mágica, em verdade vos digo... 

Melhor do que procurais é em quem tropeçais

Até breve