A falta de clareza do absurdo processo iniciado pelo Presidente da República tem permitido todas as teses sobre as suas verdadeiras intenções. Que, como aqui escrevi, se está a preparar o segundo resgate. Que apenas quer criar as condições para avançar com um governo de iniciativa presidencial. Que quer promover um golpe contra Passos Coelho dentro do PSD. Que está a ganhar tempo e condições para marcar eleições antecipadas sem ser responsabilizado por qualquer tipo de instabilidade. Ou que quer, apenas, lavar as mãos das consequência da actual crise política. Aquilo em que ninguém realmente acredita é que o suposto processo negocial agora começado acabe em qualquer coisa de substancial.
Seja qual for a tese correcta, o que Cavaco Silva fez foi alimentar o pântano político em que vivemos. A falta de clareza do seu discurso apenas promoveu o que de mais mesquinho existe na política, com uma sucessão de jogos escondidos.
O Chefe de Estado pode e deve decidir se mantém este governo, se o substitui por um de iniciativa sua ou se dissolve o Parlamento e marca eleições. E deve fazê-lo de forma cristalina, para não deixar a vida política degradar-se. Para não promover a confusão. Para não termos de ver um ministro a encerrar o debate sobre o Estado da Nação sem se saber que lugar realmente ocupa. Para não assistirmos ao maior partido da oposição a negociar com o PSD e o CDS ao mesmo tempo que vota a favor de uma moção de censura. O Presidente deve preservar e defender as instituições. Não tem autoridade para determinar as posições dos partidos em relação a esta crise e a sua política de alianças. O que é insustentável é ver um Presidente que deixou as instituições democráticas degradarem a sua imagem junto dos cidadãos querer, agora, tutelar quase todo o sistema partidário.
Estas negociações estão fadadas ao fracasso. Pelos limites que o Presidente impôs no seu conteúdo, deixando convenientemente de fora todas as alternativas de que discorda. Pelos prazos definidos, já que numa semana não se decide todo o futuro de um País. Pela tentativa de impor um "negociador", mostrando que é o próprio Presidente que não se considera uma "figura credível". Pela falta de clareza de objectivos. E pelos interlocutores: de um dos lados está um governo que o próprio Presidente deixou como interino, do outro um partido que exige eleições antecipadas e de fora ficaram três partidos, que nem convidados foram a participar nestas conversas. Ao promover esta farsa, Cavaco Silva apenas conseguirá, como aliás pareceu ser o seu objectivo na intervenção que fez aos portugueses, degradar ainda mais a imagem da democracia e dos partidos políticos. Para, seja qual for o seu objectivo final, defender a sua própria imagem.
A única resposta honesta seria não alimentar esta charada. O que passaria por exigir do Presidente uma decisão clara, antes de qualquer conversa entre partidos políticos. Ou seja, que comece, antes de fazer exigências a terceiros, por cumprir o papel que a Constituição lhe reserva.
Se o Presidente considera que o governo tem condições para governar, este governará com a maioria que dispõe. É essa maioria que tem, por sua iniciativa, de procurar ou não um apoio alargado para as medidas que quer tomar. E caberá aos partidos da oposição definir, sem chantagens presidenciais ilegítimas, que posição devem ter sobre o caminho a seguir. Se o Presidente considera que este governo não tem condições para continuar, forma, com as suas exíguas forças, um governo de iniciativa presidencial com apoio maioritário no Parlamento. Ou marca eleições para brevemente, enquanto o financiamento externo está garantido. Tão simples como isto.
Ao entrarem neste circo, que só pode acabar numa enorme frustração para os portugueses e descrédito para os seus actores, os partidos apenas tentam não ficar mal na fotografia. Mas acabarão por pagar o preço de tanta dissimulação. Qualquer "compromisso para salvação nacional", seja lá o que isso queira dizer, passa, antes de tudo, por ter um Presidente capaz de clarificar o que está obscuro em vez de fazer exactamente o oposto. Se não é capaz de tomar decisões, para não ser responsabilizado pelas suas consequências, que o assuma de uma vez por todas. Mas poupe-nos a ralhetes inconsequentes e a golpes palacianos.
Nunca pensei que passados quase 40 anos sobre a recuperação da sua dignidade como povo, esse povo a que pertenço, agarrado a brandos costumes e memória curta, viciado em atroz subserviência social e religiosa, sem coragem ou discernimento para desafiar o Futuro, tivesse ao longo de todo esse tempo dirigido os seus passos para a triste recuperação de uma condição que pouca diferença fará daquela a que foi arrancado pelos Capitães de Abril.
Teve esse povo o discernimento de escolher homens e mulheres capazes de lhe oferecerem uma das constituições mais progressistas da Europa. E teve logo a seguir a capacidade de escolher, entre candidatos carregados das lembranças e bolor do passado, um homem sério e inteligente para ocupar a mais alta magistratura da nação.
E foi prosseguindo o seu caminho, sempre rejeitando maioritariamente o passado, mas sem a argúcia suficiente para se aperceber das sucessivas armadilhas legislativas que esse passado lhe foi subrepticiamente colocando na arquitectura do poder.
E chegámos de novo à beira do precipício: um presidente, uma maioria, um governo, com as vestes do antigamente. Sem a sapiência dos povos com séculos de sedimentação democrática, "este povo que não sabe governar-se nem se deixa governar", caiu no maior logro em que democraticamente nunca pode cair qualquer povo: colocar todos os ovos no mesmo cesto! Nem a experiência "hitleriana" alemã lhe valeu para o que quer que fosse!...
Agora depara com a incompetência e corrupção mais soezes, na sua "casa maior", na Casa da República. E assiste surpreendido e incrédulo às diatribes da mais alta figura do estado: onde julgava estar a sua última defesa da irresponsabilidade, corrupção e incompetência de um (des)governo que as suas próprias mãos colocaram no poder, está uma criatura ignóbil, mesquinha, egocêntrica, retrógrada, inconveniente e teimosamente senil, de que não se livrará antes que se esgote de inanição o resto de tão doloroso mandato.
O cesto dos ovos tombou ao chão e uma gigantesca omelete escorre, como fria lava pelas escarpas do precipício, ao encontro do fundo que já ninguém consegue descortinar. E alguém saberá se porventura ainda haverá remédio?!... Olhando o espectáculo deprimente da escorrente lava amarela, com os pés à beira do precipício, apenas nos faltará, quem sabe... um pouco mais de tempo, para o remédio final !...
Até breve
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