As dúvidas em torno da melhor data para a homenagem a Ramalho Eanes ilustram bem o seu percurso político. E que se resume neste facto: foi eleito para um primeiro mandato como candidato da direita e para o segundo como candidato da esquerda. O papel que teve no 25 de Novembro marcaria o seu próprio papel na construção da democracia. Se o tornava no candidato natural daquilo a que agora se chama "arco da governação", permitia, como moderado, que fizesse pontes com o resto da esquerda. Até porque, apesar do seu discurso público, a cúpula do PCP viu o 25 de Novembro como uma inevitabilidade. E viu muito bem. O 25 de Novembro travou um processo revolucionário que já perdera a sua base social de apoio, a sua legitimidade política e até a sua direcção, que se limitava a tentar acompanhar os acontecimentos. Que se encaminhava para um confronto de consequências imprevisíveis mas seguramente perigosas, que poderia terminar ou numa guerra civil ou num golpe da direita autoritária, com a ilegalização do Partido Comunista. Vários dados indicam que Álvaro Cunhal terá aceite não resistir em troca da integração segura dos comunistas no sistema democrático. Em tudo isto, teve um papel central o mais clarividente dos militares de Abril: Melo Antunes.
Do 25 de Novembro nascia uma figura política que, pairando sobre os lideres dos quatro grandes partidos fundadores da democracia portuguesa, iria ter um papel central na vida politica da década que se seguiu. A sua presidência correspondeu ao período de "normalização" dum país que ainda estabilizava a forma do seu regime e o seu sistema partidário. Nestas circunstâncias, o presidente tinha um papel necessariamente activo. E essa presidência foi marcada por um conflito politico e de personalidades quase permanente com Mário Soares. Uma inimizade profunda que determinou muitas das escolhas politicas de Ramalho Eanes, sobretudo na fase final da sua carreira política. Da aliança contranatura com o PCP, até à curta aventura do PRD. Resumindo: apesar da actual canonização, Eanes foi tudo menos um politico consensual. Todos os actores políticos fundamentais estiveram, pelo menos num determinado momento, contra ele.
É por ignorar o seu lado político que, apesar da data escolhida, a homenagem a Ramalho Eanes tem uma dimensão quase exclusivamente ética. Eanes sempre teve, no seu comportamento enquanto cidadão e homem público, uma irrepreensível correcção. De que nunca fez muita publicidade. Não deixa de ser interessante, aliás, o contraste ente Eanes e o atual Presidente da República. Onde num encontramos rigor na ética republicana, noutro encontramos a gestão de interesses privados, próprios ou de terceiros. Onde num encontramos discrição e humildade, noutro encontramos a exibição arrogante duma suposta superioridade moral que não encontra adesão à realidade. O que num é carácter, noutro é propaganda.
Ainda assim, não deixa de ser sintomático do estado de espirito da Nação, que seja a dimensão ética dum político, mais do que os seus pontos de vista e as suas soluções para sair desta crise, que mobiliza os cidadãos. E que escolha uma figura do passado (Eanes explicou, muitissimo bem, que tem presente na cidadania mas não tem futuro na politica), que não poderá fazer desta mobilização nada de substancial. Não é verdade o que já ouvi por aí: que o País está à procura dum salvador. Isso implicaria uma réstea de esperança que não encontro na sociedade portuguesa. Trata-se do mais puro dos sebastianismos: uma esperança quase platónica, que alimenta, através de figuras do passado, uma nostalgia de alguma confiança no poder político. Onde a dimensão ética é a mais valorizada.
A escolha da figura de Eanes para este exercício nostálgico, sendo absolutamente justa, tendo em conta a sua irrepreensível conduta moral, diz bem de Eanes, mas mal de Portugal. Um país que, vivendo uma profunda crise económica, social e política, procura santos no seu passado (Eanes, mas também Cunhal), despindo-os do conteúdo político que tiveram, é um país bloqueado na sua capacidade de se reconstruir. É um país sem esperança. Descrente de poder encontrar no presente as respostas para o seu futuro.
(Daniel Oliveira, Antes pelo contrário, in Expresso)
E só ao fim de 38 anos passados, sobre o verdadeiro dia D da Revolução dos Cravos, o comum dos portugueses tem possibilidade de começar a tomar consciência da verdade nua e crua que nos envolveu durante esse decisivo "verão quente" de 1975. E apenas porque Daniel Oliveira, com coragem e clarividência, depois de muitos o terem admitido em voz baixa e entre-dentes, ou em escritos demasiado ou, porventura, necessariamente imbricados, levanta completamente o véu que durante décadas permaneceu suspenso sobre os acontecimentos que então muitos de nós vivemos, com um formidável ponto de interrogação, na mente e no coração.
Se ninguém terá dúvidas que todo um povo deverá estar eternamente grato a umas largas centenas ou mesmo milhares, de militares patriotas, que nos tiraram das garras de um regime sem classificação, a História começa agora a retirar o protagonismo a todos aqueles que, em bicos de pés, se arvoraram em "pais da liberdade", e a entregá-lo aos verdadeiros "pais do nosso futuro colectivo", que terá sido escrito em 25 de Novembro de 1975: António Ramalho Eanes, Álvaro Cunhal e Ernesto Melo Antunes! Por motivos diferentes, teremos de reconhecer, mas com um traço comum aos três, que nos obrigará sempre a admitir, como de profundo patriotismo!...
A Álvaro Cunhal, tão justamente amado, como incompreendido e odiado, a História já reservou para sempre o reconhecimento dos seus atributos únicos. A António Ramalho Eanes, o sentido de justiça dos homens, acaba de lhe prestar, felizmente em vida, a justa homenagem de que era e sempre será credor.
A Ernesto Melo Antunes, a História, inexoravelmente e de forma bem mais justa que a gratidão dos homens, tarde ou cedo, há-de prestar-lhe a homenagem que há muito lhe deveria ter sido prestada, não fosse o povo a que pertenceu e a quem se deu de forma abnegada e altruista, tão aproveitador do farelo e estragado e esquecido no aproveitamento da farinha.
Na minha profunda insignificância, aqui fica a minha modesta homenagem a Ernesto Melo Antunes, o militar de Abril que mais admirei e que recordo, sentida e saudosamente. E não foram apenas os cigarros que nos aproximaram...
Até breve
E só ao fim de 38 anos passados, sobre o verdadeiro dia D da Revolução dos Cravos, o comum dos portugueses tem possibilidade de começar a tomar consciência da verdade nua e crua que nos envolveu durante esse decisivo "verão quente" de 1975. E apenas porque Daniel Oliveira, com coragem e clarividência, depois de muitos o terem admitido em voz baixa e entre-dentes, ou em escritos demasiado ou, porventura, necessariamente imbricados, levanta completamente o véu que durante décadas permaneceu suspenso sobre os acontecimentos que então muitos de nós vivemos, com um formidável ponto de interrogação, na mente e no coração.
Se ninguém terá dúvidas que todo um povo deverá estar eternamente grato a umas largas centenas ou mesmo milhares, de militares patriotas, que nos tiraram das garras de um regime sem classificação, a História começa agora a retirar o protagonismo a todos aqueles que, em bicos de pés, se arvoraram em "pais da liberdade", e a entregá-lo aos verdadeiros "pais do nosso futuro colectivo", que terá sido escrito em 25 de Novembro de 1975: António Ramalho Eanes, Álvaro Cunhal e Ernesto Melo Antunes! Por motivos diferentes, teremos de reconhecer, mas com um traço comum aos três, que nos obrigará sempre a admitir, como de profundo patriotismo!...
A Álvaro Cunhal, tão justamente amado, como incompreendido e odiado, a História já reservou para sempre o reconhecimento dos seus atributos únicos. A António Ramalho Eanes, o sentido de justiça dos homens, acaba de lhe prestar, felizmente em vida, a justa homenagem de que era e sempre será credor.
A Ernesto Melo Antunes, a História, inexoravelmente e de forma bem mais justa que a gratidão dos homens, tarde ou cedo, há-de prestar-lhe a homenagem que há muito lhe deveria ter sido prestada, não fosse o povo a que pertenceu e a quem se deu de forma abnegada e altruista, tão aproveitador do farelo e estragado e esquecido no aproveitamento da farinha.
Na minha profunda insignificância, aqui fica a minha modesta homenagem a Ernesto Melo Antunes, o militar de Abril que mais admirei e que recordo, sentida e saudosamente. E não foram apenas os cigarros que nos aproximaram...
Até breve
Gostei das duas partes do post.
ResponderEliminarMas, lamentavelmente, Ramalho nunca me agradou completamente: teve a deriva do partido do homem das vacas e colou-se a Cavaco em dadas circunstâncias.
Claro que lhe faço a justiça de o considerar incomparável a esse homúnculo que vagueia por Belém.
Admiro Melo Antunes, mas admiro ainda mais Salgueiro Maia, a cuja viúva Cavaco recusou a pensão de sangue , mas que elogiou diversos PIDES por relevantes serviços à Pátria.
Tudo de bom
Querida amiga, na nossa saudável diversidade de pensamento, o que mais me orgulha, dá prazer e tantas vezes comove, é o formidável e grosso traço que nos une. Este pequeno e insignificante torrão, não seria o vale de lágrimas em que se tornou, se o que nos une alguma vez pudesse ser lei...
EliminarNão quero morrer, sem um dia te poder dar um abraço. Tão apertado com a admiração que me mereces...
Comovida, agradeço e retribuo as tuas palavras, que me tocaram fundo.
EliminarBem hajas!!
Gostei muito do post. Sou cada vez mais fã do Eanes. E gostei da vossa conversa. E também quero um abraço apertado. E não quero ouvir falar de morrer...
ResponderEliminarNo meu coração e nos meus braços, cabem todos aqueles de quem gosto. E como eu gosto de ti, Maria dos Anjos.
EliminarEu também amo a vida e não quero ouvir falar em morrer. Foi apenas uma força de expressão. Tens razão...
Eanes foi talvez o Presidente que mais problemas teve . Lidar com os políticos emergentes com um País que ameaçava entrar em confronto generalizado, e economia destroçada , não foi tarefa fácil. Mas ele conseguiu. Um homem honesto, justo e competente. Temos tão poucos por aqui! O meu respeito e admiração por este grande Português.
ResponderEliminarSubscrevo inteiramente o comentário do caro Marco António!
EliminarUm grande Português!...