sábado, 21 de outubro de 2017

Melhor do que procurais é em quem tropeçais (IV-CONCLUSÃO)


DANIEL OLIVEIRA - A ENTREVISTA E O MOMENTO (TOMO IV - CONCLUSÃO)

ML - Ser comentador com tanto reconhecimento como o Daniel é uma responsabilidade mas também um privilégio?

DO - A vida das pessoas ultrapassa aquilo que é o espaço mediático. Ainda assim, tenho a responsabilidade de ajudar a formar opiniões e a criar um pensamento hegemónico. No meu caso, sou um comentador minoritário no espaço público, a contrariar o pensamento dominante. Apesar de não representar o sofrimento das pessoas, devemos dar-lhe voz. Não é sentir por elas, é dar-lhes voz. E é privilégio porque nós todos temos opiniões. Privilégio é eu poder dá-las com grande destaque. Tem de se fazer por merecer todos os dias, apesar de as pessoas pensarem que é só mandar uns bitaites. Sendo generalista como qualquer jornalista, não sou especializado, sei sempre menos do que muita gente sobre cada assunto que escrevo. E nunca, em dois dias, saberei tanto para ensinar alguém. O que eu tento fazer é informar-me para dar uma opinião informada. Já errei muita vez, já escrevi disparates e coisas que estavam erradas, mas fi-lo sempre com a honestidade de tentar saber o máximo sobre aquilo com o tempo que tenho para poder ter uma convição sobre o assunto. Se não tiver, em princípio não escrevo sobre esse assunto.

ML - Disse em 2012 que o seu “boneco televisivo é mais estúpido do que na realidade”

DO - É sempre.

ML - Mas porquê mais estúpido?

DO - Porque a televisão é um meio estúpido. No sentido em que, enquanto falo tenho de pensar na minha postura física, tenho poucos minutos para falar.

ML - Está sempre muito condicionado pela questão do tempo?

DO - Condicionado de uma forma absurda. Absurda não, tem que ser. Mas não há nenhuma ideia sofisticada que possa passar na televisão. A televisão é para picar, para resumir, para dizer umas ideias. Depois, estou condicionado pelo boneco que as pessoas fazem de mim. Tenho as sobrancelhas carregadas, tenho ar de mau e isso marca as opiniões. É, nesse sentido, que o boneco é mais estúpido. Nós somos para o exterior simplificações. Há pessoas que têm uma arte admirável que é parecerem mais inteligentes do que são. Não são assim tão poucas. Eu gosto de acreditar que pareço mais estúpido do que sou. Quando disse isso estava a elogiar-me, não me estava a criticar, estava a dizer bem de mim [risos]. Ou seja, acho que há uma complexidade, uma densidade que o boneco mediático não consegue passar. A televisão não chega para passar, por exemplo, as contradições. Sou uma pessoa contraditória. Acho uma coisa extraordinária. Dos temas que gosto mais são os que não são claros. Temas que são mais estimulantes para a discussão. E são as piores discussões para se ter em televisão onde o que é bom é o preto e branco, prós e contras. Isso é sempre mais redutor. Em geral, as pessoas inteligentes gosto mais de as ler. As superficiais gosto mais de as ouvir, perco menos tempo.

ML - Ainda há muita gente que vê no Daniel Oliveira um rosto do Bloco de Esquerda?

DO - Imensa. Todos os dias recebo comentários do estilo ‘vocês no Bloco'. Saí do Bloco há quatro anos.

ML - Como é que lida com isso? Não o incomoda?

DO - Corrijo. Mas não me incomoda. O Bloco não é, seguramente, uma coisa da qual me arrependa.

ML - O Bloco que deixou há quatro anos é hoje um Bloco muito diferente?

DO - Irreconhecível. Para já, já não conheço muita gente. Depois, esta experiência [a 'Geringonça'] acho que teve algum impacto. Mas ainda há coisas que continuam um pouco iguais.

ML - Como por exemplo?

DO - Continua a ser um partido organicamente muito pequeno. O Bloco é um muito pequeno partido a nível de militantes e médio de eleitores. Isso cria distorções terríveis, cria falta de implantação social. O BE depende muito do voto e é, ainda, um partido muito marcado pelas correntes dos grupos originais, que o fizeram nascer, que é uma coisa já anacrónica e que impede o partido de evoluir mais depressa. O Bloco melhorou depois da minha saída. Não teve nada a ver com a minha saída. Acho que cresceu. A Catarina Martins, ao contrário das minhas expetativas, é uma boa líder. Se o Bloco crescesse e conseguisse ter uma implantação social proporcional à sua implantação eleitoral, aí daria um grande salto. Os tempos não ajudam mas acho que o Bloco nunca fez grande esforço para isso. Mas, ter participado no nascimento do primeiro partido que rompeu com os quatro partidos do sistema político é uma das coisas de que me posso orgulhar na vida.

ML - Passa-lhe pela cabeça voltar a ser dirigente de algum partido?

DO - Não. Só não posso dizer nunca porque qualquer pessoa que se aproxima dos 50 sabe que essa palavra não se usa por uma questão de auto-preservação. A minha convicção hoje é nunca. Sabe-se lá o que é que vai acontecer. Não tenho qualquer vontade de ter vida partidária. Acho que sou útil de outras formas. Apesar de achar que a felicidade é sobrevalorizada, sou mais feliz fora dos partidos.

ML - E mais livre?

DO - Isso sempre fui. Há um lado da falta de liberdade auto-imposta nos partidos que é bonita e comporta alguma generosidade que é, em vez de se dizer tudo o que se pensa, sacrifica-se algumas convicções em nome do coletivo. Isto é compromisso e é bonito. Não desprezo o compromisso. Não me verá a fazer discursos sobre a “carneirada” dos partidos. Acredito que o compromisso é uma coisa fundamental na vida e não acredito nada em pessoas que acham que sozinhas são muito livres. Sozinhos não somos nada livres, somos escravos. Mas, nunca me vi obrigado a defender em partidos coisas em que não acreditava. Várias vezes me calei. Mas nunca deixei de dizer coisas em que acreditava. Nunca me violentei a esse ponto. Nunca deixei que me violentassem a esse ponto. Sempre disse que, em nome do compromisso, sou capaz de deixar de falar em determinado assunto se para mim ele não é uma questão de vida ou de morte. Não como comentador. Isso não o fiz. Foi um dos meus problemas.

ML - Ainda assim, como comentador, nessa altura, tinha de ter alguns filtros?

DO - Não tinha [risos]. Passou a ser muito difícil de gerir. Como comentador tive mesmo de fazer várias vezes o esforço de esquecer que era militante do Bloco de Esquerda. Critiquei o partido várias vezes, quando nem sequer estava na luta interna dele. Provavelmente não teria saído tão rápido do BE se não tivesse a mesma exposição pública. Não é que tenha sido empurrado para fora do partido, mas obrigou-me dentro dele a assumir confrontos políticos que provavelmente não teria assumido. Era uma coisa injusta para mim e, muitas vezes, para o partido. Falava e as pessoas julgavam que era a opinião do Bloco e muitas vezes era contrária à do partido. Era uma posição muito difícil. Seja como for, não foi por isso que saí.

A razão por que não quero voltar a ter atividade partidária é aquela em que passamos a ter de nos preocupar com o que nós pensamos e não o que pensar de nós. Não consigo fazer essa parte do teatro. Sou o oposto do Marcelo Rebelo de Sousa, não consigo fazer aquele número todo sempre tão genuíno. Não consigo treinar tão bem a minha espontaneidade. Não consigo e não quero.

ML - Não quer ser militante de partido algum, mas começou por ser do PCP muito cedo e do Bloco até há pouco tempo.

DO - É uma coisa extraordinária, não tenho perfil de militante e, no entanto, fui militante grande parte da vida. Era de uma família comunista. O meu padrasto era deputado na Constituinte, do PCP, a minha mãe era sindicalista, eram praticamente todos militantes do PCP. As pessoas não têm ideia, mas naquela altura revolucionária não se falava de futebol, falava-se de política. Cresci num caldo político. Via telejornais com 6, 7 anos. Comprava jornais a partir dos 10, 11. Foi influência familiar mas não foi só.

ML - Foi também todo um contexto muito específico...

DO - O contexto e o meu interesse. Interessava-me mesmo muito e genuinamente por política. Fiz a escola de quadros do PCP com 14 anos. Era muito precoce politicamente mas não deixava de ser um miúdo. Precoce mas ali com alguma infantilidade, inocência e ingenuidade. Não estou a dizer que fui comunista por ser ingénuo e inocente.

ML - E saiu do PCP aos 20. O que é que o fez sair?

DO - Que a igreja estivesse contra nós, tudo bem, que o ocidente estivesse contra nós, tudo bem, mas os operários estarem contra nós, já era uma coisa mais complicada na minha cabeça de 14 anos. Começou aí o meu questionamento. Interessava-me por política internacional. Sem saber bem o que isso era, tornei-me eurocomunista, depois, numas discussões internas, comecei a aperceber-me da falta de democracia do PCP. A falta da democracia só se nota quando nós somos contra, quando somos a favor não damos por nada. Comecei a ter confrontos internos e os dois últimos anos já foram a rutura completa. Mantive-me até 89 porque era um corte difícil, era um corte familiar.

ML - E como é que foi a reação da família, tendo em conta que foi o primeiro a sair? ‘Levou nas orelhas’?

DO - Reagiu bem. Foi a vantagem de o divórcio ter sido lento. Como a minha saída demorou, quando saí já não era uma novidade. Aliás, à excceção de três pessoas, acabou tudo por sair.

ML - Quais foram as suas influências?

DO - Foi o meu padrasto, Manuel Gusmão. Foi a pessoa que, aliás, marcou a família. Foi a grande influência, pelo menos na fase inicial, depois as grandes influências foram as pessoas com quem fiz política. Foram sendo pessoas diferentes. Miguel Portas foi a pessoa de quem, depois de sair do PCP, estive politicamente mais próximo durante muito tempo, até à morte dele.

ML - O seu pai, Herberto Helder, nunca quis exposição mediática. Foi fácil manter esse desejo?

DO - Sim. Mas o meu pai nunca mo pediu. Aliás, até me deu jeito. Na fase de afirmação profissional escondi que era filho dele. Quando havia alguém que sabia, pedia para não divulgar. Pode ter sido uma coisa um bocado infantil mas foi importante para, profissionalmente, ter a convicção e a certeza do que o que conseguisse era por mérito meu.

ML - Não quis ser conhecido como o filho de?

DO - Para mim seria uma tragédia. E não era por ser filho de Herberto Helder, era ser filho de. Cada um tem a sua maneira de lidar com estas coisas e a minha é bastante radical. Todos nós nos construímos como pessoas, aos nossos olhos e aos das outras pessoas. Estou-me nas tintas para o que as pessoas pensam, as que não conheço de lado nenhum, não com aquelas com quem trabalho. Sou um ser humano, não sou um sociopata. Era muito importante ter a certeza de que nunca ninguém diria que só faço o que faço porque sou filho de. Hoje ninguém pode dizer isso de mim, tenho a certeza absoluta. Houve imensa gente que só soube que eu era filho do meu pai quando o meu pai morreu, apesar da evidente semelhança física. Mesmo depois da morte do meu pai, continuo a não querer falar da minha vida privada. Só há duas maneiras de expor a vida privada em público: ou através da manipulação ou da pornografia. Manipulação é usarmos a vida privada para as pessoas pensarem coisas boas sobre nós. A pornografia é mostrar não o que queremos que se saiba dela mas tudo.

ML - Como lida com a exposição mediática?

DO - A fama e o sucesso são coisas tão passageiras e irrelevantes que nunca me motivaram. Nunca quis ser famoso, embora nunca o tenha evitado. E a única coisa de que não gosto é não ter direito à minha contradição e aos meus pecados com a vida que tenho hoje. O controlo social. É as pessoas reconhecerem-me. Não é virem falar comigo, isso não me chateia nada. O saber que estou permanentemente sob escrutínio. Na realidade, se pudesse, tinha outra cara na televisão. Era outra pessoa. Eu gosto do anonimato e as probabilidades de pecado reduzem brutalmente. Odeio as virtudes públicas.

ML - Disse que não falava da sua vida pessoal, mas vou arriscar perguntar que memórias guarda do seu pai?

DO - Boas.

ML - Conversavam sobre política?

DO - Não. Era um assunto que não lhe interessava. Para já, o meu pai não gostava de discutir. O jogo argumentativo não era a coisa que mais prazer lhe dava. E não gostava de política. Tínhamos uma espécie de pacto: que as nossas imbirrações não tropeçassem nas nossas paixões.

ML - O facto de gostar de escrever bebeu alguma influência na veia poética do seu pai?

DO - Acho que não. Quando era jovem queria, como todos os jovens de todo o mundo, escrever poesia. Felizmente atirei para o lixo e posso acreditar que era boa porque não tenho como confirmar [risos]. É difícil atribuir isso ao meu pai porque cresci numa família onde se escreve, onde se lê. O problema de falarmos na vida privada, lá está, é que simplificamos. Eu precisava, não de uma entrevista mas de um psicanalista para perceber no que é que o meu pai me influenciou. Quando falamos aos jornalistas da nossa vida privada, construímos um guião. Não é a nossa vida privada porque isso não se resolve numa entrevista. Não é como naquelas entrevistas do outro Daniel Oliveira em que as pessoas conseguem contar, numa hora, a sua vida toda a chorar. Acho uma coisa extraordinária. Eu precisava de meses para contar a minha vida e conseguir chorar com ela [risos].

ML - É um bom desafio para o Daniel Oliveira. Para os dois, neste caso.

DO - Não, não. Não aceitaria. Não gosto do género. Quando quero saber da vida das pessoas que não me são próximas leio biografias, são pessoas que, em princípio, já morreram e que já sabemos como acabou a história. E mesmo essas são um olhar muito parcelar sobre as contradições que as pessoas têm. Confesso que não leio nem vejo entrevistas pessoais. A vida das pessoas não cabe numa entrevista. A relação que tive com o meu pai, com a minha mãe, não cabe numa entrevista. É demasiado complexo e intímo.

ML - Porque é que não foi jornalista de internacional como queria ser?

DO - Porque não tenho talento para línguas. Tinha essa dificuldade, apesar de ser, de longe, o assunto que mais dominava. Mas não conseguia escrever em inglês e isso limitava-me depois no trabalho. É a única coisa de que eu tenho ...

ML - Pena?

DO - Sim. Tenho alguma pena.

ML . Se se tivesse especializado em jornalismo internacional, teria sido agora enviado especial à Catalunha. O que é que mais o chocou na questão da catalã, além da violência?

DO - Provavelmente. O que me choca é a cegueira geral. Choca-me a parte de não se perceber que Espanha tem um problema político que tem que ser resolvido politicamente. Não há um problema de ordem pública. Podem prender as pessoas que quiserem. Espanha tem de ser um Estado federal, tem de corresponder ao que a Espanha é. É um Estado plurinacional e recusa-se a assumir isso. Quer o PP, quer o PSOE. Mais no caso do primeiro, que é herdeiro do franquismo. O PP está-se nas tintas para o que os catalães acham ou não acham. O que me incomoda nesta questão é que toda a gente fala do nacionalismo catalão. Eu não defendo nacionalismos, defendo a autodeterminação dos povos e não é só dos pobres. O que me faz confusão é não se perceber que há uma coisa que é o nacionalismo espanhol muitíssimo agressivo e violento, que esmagou a República em Espanha que impediu que se falassem as línguas nacionais no País Basco e na Galiza. E que ainda hoje está vivo com o mesmo grau de intolerância. Não me ponho ao lado do nacionalismo espanhol que é maioritário e fortemente intolerante. E mais, é o elemento central da identidade espanhola.

A Catalunha foi a única que se conseguiu libertar deste domínio desse esmagamento cultural. Espanha tentou deslegitimar o combate democrático à paulada. O referendo foi um acto político, em que o objectivo era ter um momento de desobediência político que levasse Madrid a mostrar o seu verdadeiro rosto e, com isso, ganhar mais gente para o independentismo. Madrid fez o favor. PP e PSOE podem vir a mudar a Constituição por causa da questão das nacionalidades. Se calhar, a desobediência e a irreverência valeram a pena. Para conquistar coisas é preciso lutar por elas.

(Melissa Lopes, in Vozes ao Minuto)

Creiam todos aqueles a quem fiz "tropeçar" numa das mais singulares, curiosas e categorizadas figuras do todo o pobre comentário político da nossa terra, que foi um privilégio poder fazê-lo. Há muito admirador subjugado ao extraordinário perfil de Daniel Oliveira, entendi, perante esta sublime entrevista de Melissa Lopes, mandar às malvas ou às urtigas alguns dos preconceitos com que o seu pensamento será etiquetado por quem lamenta conhecê-lo, para o mostrar aos que eventualmente o não conhecessem ainda, ou o pudessem confundir com um outro seu homónimo que, talvez nos limites que a sua capacidade permite, por aí andará cumprindo destino bem mais humilde.

Às vezes dou comigo a pensar que Daniel Oliveira não é de cá. Não é português, tão distante o reconheço dos esteriotipados comentadores da nossa praça que, salvo honrosas e dignas excepções, cada vez mais me impõem o redentor "zapping", única granada defensiva a que pode recorrer o espectador violado no seu sagrado direito à informação.

Da esmagadora maioria dos políticos cá do bairro, já não me resta pachorra para falar...

Farto de aventuras, juras, promessas e "dâmasos salcedes tóxicos e dependentes" da caixinha mágica, em verdade vos digo...

Melhor do que procurais é em quem tropeçais

Até breve

Sem comentários:

Enviar um comentário