As marionetas de Putin«Hoje, caro leitor, cara leitora, quero apenas falar-vos de duas entrevistas que li nos últimos dias. São úteis para tentar entender melhor a guerra de Putin e aqueles que, de forma mais ou menos descarada, o apoiaram e admiraram nas nossas democracias liberais. Não foram poucos. São entrevistas a dois intelectuais europeus notáveis, cujos nomes lhe são certamente familiares: o historiador francês Olivier Roy e o politólogo e historiador búlgaro Ivan Krastev. Tento apenas resumir algumas das suas ideias.
A Idade Média com bombas
“Ele está na época errada e não percebe. Putin é ao mesmo tempo um estratega do século XIX e um homem soviético, tem uma visão territorial do poder e uma visão cultural do império russo em torno da sua componente eslava e ortodoxa. Não compreendeu que o patriotismo ucraniano existe e que o sistema soviético, fundado numa federação de repúblicas socialistas acabou, paradoxalmente, por reforçar, na Ucrânia, na Geórgia e na Arménia, os nacionalismos republicanos”, explica Olivier Roy numa entrevista publicada no último número do L’Observateur, dedicado à guerra de Putin na Ucrânia. “Quer ser o novo Pedro, o Grande, e deixar o seu nome na História, aparecendo como aquele que restabeleceu o império russo – é esta a sua obsessão. A loucura está em fazer uma guerra do século XIX no século XXI”.
Talvez seja este desfasamento no tempo que faz com que, 28 dias desde o início da invasão, quase todos os seus objectivos tenham até agora fracassado. É verdade que à custa da resistência heróica dos ucranianos, liderados por um Presidente que, esse sim, é um herói do nosso século. Se a Ucrânia não existia, a resistência ucraniana não podia fazer parte dos seus cálculos. Mas este não foi o seu único engano. “Em duas semanas, Vladimir Putin – um homem que Trump descreveu recentemente como um ‘génio estratégico’ – conseguiu revitalizar a NATO, unificar um Ocidente que estava profundamente dividido, transformar um Presidente quase desconhecido num herói global, destruir a economia russa, consolidar o seu legado como um criminoso de guerra”, escreve Brian Klass, do University College de Londres, na revista The Atlantic.
Nada disto nos ajuda a tornar suportável o martírio de Mariupol. “Como na Idade Média, mas com bombas”, descreve a Economist, citando um habitante da cidade cercada. Nem sequer a prever quando e como terá fim. Ajuda-nos apenas a deitar por terra o que ainda resta dos argumentos daqueles que continuam desesperadamente – ou deliberadamente – a tentar encontrar uma justificação para a guerra bárbara e injustificável que Putin desencadeou contra a Ucrânia – seja ela no “complexo de cerco” do país mais extenso do mundo, no alargamento da NATO, nas intenções belicistas dos Estados Unidos ou na “humilhação” sofrida pela Rússia e imposta pelo Ocidente, depois da implosão da União Soviética. Ou daqueles que repetem acriticamente, como cães de fila do Kremlin, que o Governo de Kiev é uma extensão de forças neonazis que se movem na sombra e que merecem tudo aquilo que lhes está a acontecer. Já são raros, cada vez mais envergonhados, mas ainda os há, tentando semear a dúvida, que já não pode existir para qualquer ser humano que se considere normal.
Mas o que merece reflexão é o facto de tanta gente, nas democracias ocidentais, ter defendido o Presidente russo, a sua versão da história, o seu expansionismo agressivo e os seus métodos autocráticos. Foi preciso uma guerra no coração da Europa, que nos levou de volta à II Guerra Mundial, para que essa corrente política conta a democracia liberal começasse a retroceder. Também nesta frente de batalha, Putin consegue destruir quase toda a influência que tinha conquistado no coração das próprias democracias. A linha divisória entre a democracia liberal e os seus adversários transformou-se numa barreira intransponível. Não há zonas cinzentas. Também aqui, Putin prestou um enorme favor às forças políticas democráticas sobre as quais se construiu a Europa depois da guerra e depois da queda do Muro de Berlim.
A tentação iliberal
Voltando a Olivier Roy. “Tínhamos visto um deslizamento favorável à Rússia de Putin em segmentos significativos das opiniões públicas ocidentais: uma certa direita cristã, a maioria dos populistas e alguns meios profundamente conservadores. (…) Este deslizamento tem, naturalmente, um nome – a ‘ameaça islamista’. O 11 de Setembro exacerbou esta tendência, permitindo aos movimentos populistas desenvolverem-se a partir da rejeição do Islão”. Conhecemos demasiado bem esta história, aliás fundada no “confronto de civilizações” de Samuel Huntintgon, publicada em 1993, que alimentou os supremacistas brancos americanos, que infectou o Partido Republicano, que conquistou o apoio dos evangélicos, que deu força aos Orbán, aos Salvini, às Le Pen e a tantos outros, e que hoje caiu por terra fragorosamente na guerra de Putin contra um país-irmão igualmente de maioria eslava e ortodoxa. “Neste jogo [de civilizações], a Rússia aparecia, para toda esta franja ‘reaccionária’, como uma aliada, como uma muralha do Ocidente”. Como o último reduto dos valores cristãos tradicionais contra a sua “perversão” nas sociedades liberais.
Os populistas odeiam o lado liberal da democracia. Putin vê nos seus valores liberais o sinal da decadência irreversível do Ocidente. A guerra sem limites que desencadeou contra a Ucrânia não está a destruir apenas a vida e os haveres do seu povo. Está a destruir, argumento a argumento, esta corrente política europeia que teve uma vida fácil nos últimos anos. Talvez não até aos escombros. Ainda há em França quem continue disponível para votar em Eric Zemmour, que não renegou o seu deslumbramento pelo novo czar de Moscovo, embora agora tente disfarçá-lo. A sua popularidade está em queda. “Hoje, Putin tornou-se indefensável. Faz medo”, diz o historiador francês. “Sacrificou o soft power que tinha adquirido nos últimos vinte anos e que lhe permitiram ser um actor global, por uma visão puramente territorial do poder da Rússia.”
Hoje, sabemos com uma clareza meridiana, o que já sabíamos antes: que a única muralha contra esse deslizamento de que fala Roy é a democracia liberal com a sua crença profunda em que todas as pessoas nascem iguais em direitos.
Se quisermos continuar este esforço para entender Putin e a sua “ditadura personalizada”, que construiu ao longo de vinte anos de poder, isolado no seu castelo do Kremlin, tratando os seus próximos como vassalos, debitando os seus discursos “alternativos”, reprimindo o seu povo, vale a pena ler uma outra entrevista, publicada no último número da revista alemã Der Spiegel (na sua versão em inglês), a Ivan Krastev, cientista político búlgaro a trabalhar em Viena, cujas obras sobre a Europa são hoje uma referência. “Putin vive de analogias históricas e de metáforas”. É sobre o isolamento do Presidente russo, a forma como compreende a História da Rússia e como se tornou um prisioneiro da sua própria retórica.
“Putin tem uma missão a cumprir e evitar riscos deixou de ter importância para ele. Pode parecer demasiado psicologista, mas ele faz parte da última geração soviética. A sua função como agente do KGB era defender e proteger a União Soviética. Mas ele e os seus próximos falharam. A União Soviética colapsou de um dia para o outro, sem uma guerra, sem uma invasão. Putin e o KGB não compreenderam o que aconteceu. Apenas que fracassaram. Creio que tem um forte sentimento de culpa.” O facto de, em 1989, estar estacionado na Alemanha Oriental, mais precisamente em Dresden, tornou os acontecimentos que abalaram o mundo e puseram fim à Guerra Fria ainda mais difíceis de compreender. Não viveu por dentro o colapso da União Soviética. O que viveu “foi a euforia nacional na Alemanha quando caiu o muro, porque estava lá.”
Aqueles que fogem
Hoje, calcula-se que mais de 300 mil russos, quase todos quadros relativamente jovens que, mesmo rejeitando o regime, organizaram as suas vidas de forma a poderem continuar no seu país e desenvolver o seu trabalho, já abandonaram a Rússia nas últimas três semanas. A New Yorker ouviu alguns deles. São relatos impressionantes. Alguns saíram de carro pela fronteira finlandesa. Houve inúmeras reportagens sobre isso. Outros viram-se obrigados a tomar vários voos para poder chegar a uma qualquer cidade europeia onde acreditam poder reconstruir as suas vidas.
A Rússia está a perder uma geração que viveu quase toda a sua vida depois do fim da URSS com relativa liberdade. Pelo menos durante algum tempo. Que conhecia o mundo e que não consegue assistir à “estalinização” da Rússia. Para ser Pedro, o Grande, Putin tem de ser Estaline. Pode destruir a Ucrânia. Já destruiu a Rússia. É preciso travá-lo antes que prossiga a sua guerra de destruição.
No sábado passado, fui visitar o Museu do Holocausto de Houston com as minhas netas mais velhas. É um museu impressionante e exaustivo, onde é possível assistir também aos depoimentos dos judeus que fugiram a Hitler e que reconstruíram as suas vidas aqui. Não foi há tanto tempo assim. Na entrada, estão inscritas duas frases de Elie Wiesel. “É preciso escolher de que lado se está. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima”. E a segunda, um pouco mais à frente: “A indiferença é o pior de todos os pecados.”
Até terça-feira.»
(Teresa de Sousa, in Público, ontem)
Como acabará "Pedro, o Grande"?!...
Até breve