quinta-feira, 6 de junho de 2013

Apreciem a fotografia. Vale a pena...



Está lá longe. Da vista e, não fossem as imagens recentes, também do pensamento. Sobre o conhecimento, a lonjura então será imensa. Falo por mim. Europa?! Ásia?! Cristã?! Muçulmana?! Carne?! Peixe?! O que é a Turquia, hoje?!...

Ele, o nosso Daniel Oliveira está por lá. E este texto hoje publicado é... imperdível. Porque nada de muito valioso alguma vez ocupará lugar na nossa mente, se lhe abrirmos a porta. É o convite presumido que vos deixo. Não sejam pobres e mal agradecidos. Apreciem a luz, as cores, o contraste e a nitidez desta fotografia de Daniel Oliveira.Vale a pena... 

A Turquia sofre e avança
 
Nos arredores de Istambul, num gigantesco comício do AKP, de Recep Tayyip Erdogan, não me senti nem no Médio Oriente nem na Europa. Essa ambiguidade é, aliás, a identidade da Turquia. Ao meu lado, havia um casal em que a mulher estava de rosto coberto, apenas com os olhos à vista. À minha frente, uma jovem de classe média exibia os seus cabelos louros pintados e as suas calças justas. É melhor, nesta matéria, não simplificar. Tendo nascido dos movimentos islamistas, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) não tem correspondência com o islamismo político dos países árabes ou do Irão. Porque a Turquia é sempre um caso à parte. Em Istambul, podemos ver, a passear na rua, mulheres de rosto coberto e drag queens. Há movimentos religiosos fanáticos e uma movida gay. As campanhas eleitorais são semelhantes às ocidentais e a caridade muçulmana também faz o seu trabalho político.
  
A laicidade do Estado turco não corresponde, nunca correspondeu, a um processo democrático. Foi imposta à força pelo fundador da República Turca Mustafa Kemal Ataturk, de uma forma que apenas tem paralelo com o Xá Reza Pahlavi, do Irão. Tratou-se de um processo de secularização radical forçada de toda a sociedade. Com regras sobre a indumentária, forçando estudantes e funcionários públicos a abandonar roupas típicas do Médio Oriente e a europeizarem-se. Em 1925, foi aprovada a "lei do chapéu", que impunha o uso de chapéus dos "países civilizados". Em 1935 a lei foi estendida ao resto da roupa. A imposição de um novo alfabeto, a reinvenção da história da Turquia, a perseguição à liberdade religiosa e um poder sufocante do exército e de uma justiça dependente do poder político fazem parte da tradição turca que muitos, no Ocidente, confundem com laicidade e democracia. A ditadura (ou democracia musculada) turca, que quando não era de partido único apenas simulou o pluripartidarismo, foi, durante décadas, tutelada pela elite kemalista, baseada num nacionalismo xenófobo, num totalitarismo cultural e num poder asfixiante do Estado. Até aos anos 90, os militares punham e depunham governos. Os tribunais ilegalizavam partidos e impediam candidatos de concorrer a eleições.
  
A chegada de Erdogan ao poder foi uma lufada de ar fresco. Em dez anos, desmilitarizou, sempre numa tensão perigosa, o regime. Retirou aos juízes o poder discricionário de limitar a democracia turca. Destronou parte da elite económica, umbilicalmente ligada ao poder político. Até as relações com os curdos tiveram, com altos e baixos, se não uma pacificação, pelo menos um pouco mais de moderação, com um forte investimento no Curdistão turco. O que não espanta. Tendo como principal elemento identitário a religião, e não o nacionalismo radical, a ponte era mais fácil de fazer.
  
Por outro lado, Erdogan modernizou a economia turca. A Turquia viveu, na última década, o seu período de ouro, com um extraordinário desenvolvimento económico. Sendo de direita, conservador nos costumes e liberal na economia, o AKP retirou o Estado da economia de forma socialmente insensível. O que ajuda a explicar uma das partes da contestação de que vai sendo alvo.
   
Na política externa, Erdogan deu todos os sinais à Europa da sua real vontade, bem maior do que a dos seus antecessores nacionalistas, de integrar a União Europeia. Sinais a que a Europa, em má hora, não respondeu. Ficamos todos a perder: Turquia, Europa e Médio Oriente. Transformou o país, graças à sua melhor relação com as restantes nações muçulmanas, numa potência diplomática incontornável, na região mais complicada do planeta. E até temperou as tensas relações com o vizinho grego.
  
Mas, acima de tudo, deu sinais de que era possível um movimento islamista transforma-se numa espécie de democracia-cristã muçulmana (paralelo demasiado livre, que me perdoarão). Aquilo que poderia ser um exemplo para a Irmandade Muçulmana, no Egipto, o Hamas, na Palestina e, acima de tudo, o Hezbollah, no Líbano. Estando bem longe das minhas convicções políticas em todos os domínios, o AKP foi, até certo momento, um ator fundamental na normalização democrática da Turquia.
  
Também é bom ter cuidado quando se fala da oposição institucional turca (os movimentos cívicos são outra coisa). O Partido Republicano do Povo (CHP), o mais importante oponente do AKP, supostamente de centro-esquerda e em tempos partido único, e a extrema-direita nacionalista do MHP, são tudo menos exemplos de respeito pela democracia e pelos direitos cívicos. Muito do que está a acontecer por estes dias aconteceria, com igual ou pior brutalidade, no tempo em que a oposição laica tinha o poder. A cultura kamalista pode ser laica, mais nunca foi, para além da fachada, democrática. O hábito de fazer cair governos através da acção do exército, a repressão da oposição, o regime de partido único e a brutalidade com os curdos está no seu sinistro currículo.
  
Mesmo o suposto feminismo da oposição deve ser relativizado. As deputadas não podiam usar lenço - houve mesmo uma que foi insultada quando, por sua vontade, o fez. Mas só havia 4% de mulheres no Parlamento. Mais do que os direitos das mulheres, o que estava em causa era o poder kemalista, que abominava qualquer sinal do poder religioso, que o punha em causa. A mesma lógica que levava os nacionalistas a proibir qualquer referência pública ao genocídio arménio e fazia da questão curda um tabu (os próprios curdos não têm direito a esse nome e são, se a memória não me falha, chamados de "turcos das montanhas").
  
O início desta revolta, no Parque Gezi, foi, claro, apenas o detonador de um mal-estar. Se fosse apenas aquilo, a contestação não se teria espalhado a todo o País, incluindo à menos cosmopolita Ancara e a Esmirna. Mas não podia haver melhor símbolo das contradições do governo de Erdogan: a destruição de um espaço público para construir um centro comercial e uma mesquita. A imposição autoritária da vontade do poder em nome da nova e da velha Turquia. Do dinheiro e da religião. E o esmagamento dos protestos, escondido por uma comunicação social dominada pelo regime.
  
Este é, se me permitem, o fascínio da Turquia. Não é apenas não ser nem Europa nem Médio Oriente. É nada ser tão linear como parece. É toda sua história recente condensar a sua condição híbrida, numa sucessões de movimentos contraditórios: a secularização da sociedade impôs-se com um Estado forte e militarizado, a liberalização da sua economia foi feita por um governo conservador e religioso. Tudo contradiz as dicotomias fáceis, que põem a liberdade, o mercado e a laicidade, de um lado, e a ditadura, o Estado na economia e a religião, do outro. É sempre tudo mais complicado.
  
E é essa complexidade que faz com que, nos protestos, se junte a esquerda comunista e a extrema-direita nacionalista. Movimentos de tipo "ocupa" e islamistas. Porque a questão da islamização é apenas uma pequena parte do problema. Se quisermos, é apenas a velha parte do problema.
  
Parece existir uma confluência de agendas - direitos sociais, liberdades cívicas, pressões sobre a comunicação social, concentração de poder, resistência à islamização do País, perda de influência externa evidenciada pela guerra civil na Siria. Também pesará o cansaço (mesmo na base de apoio do AKP) com um poder quase absoluto, que venceu três eleições consecutivas e para o qual a oposição política, demasiado heterogénea, não consegue encontrar alternativa.
  
Mas a questão central parece ser, antes de tudo, aquilo a que o analista político turco  Bülent Kenes, citado por Jorge Almeida Fernandes, no "Público", chamou de "intoxicação do poder". Entre os muitos sinais de arrogância, está a tentativa de rever a Constituição para transformar a Turquia num regime presidencialista, garantindo assim, depois da candidatura de Erdogan à Presidência, a perpetuação do seu poder pessoal, o que ajuda a explicar algumas dissensões internas no próprio AKP. Em defesa dos direitos dos manifestantes tem estado Abdullah Gül, Presidente eleito com o apoio do AKP, no poder. Mandou retirar a polícia da Praça Taksim e deixou recados ao governo. Também o número dois do governo, Bülent Arinç, pediu desculpa à população pelos erros do Governo nesta crise. Mesmo assim, e é importante ter isso em conta, o partido de Erdogan continua popular nas sondagens. Parece haver uma maioria silenciosa para quem estas manifestações e os abusos que as justificaram dizem pouco.
  
Mas mesmo a indignação com os abusos de poder, num país que vive com eles desde sempre, é sinal de que a Turquia mudou na última década. O poder do AKP, que esmaga sem dó nem piedade os protestos que o contestam e tomou conta de todo o aparelho de Estado, acabou, ao desestruturar o poder militar e a tradição centralista e antidemocrática kemalista, para garantir o seu próprio domínio da vida política e social turca, por criar as condições para que os seus próprios abusos não fossem tolerados.
  
Quem veja na Turquia uma continuação da "Primavera Árabe" só pode ficar mais baralhado. O que está a acontecer na Turquia são, em simultâneo, as dores crescimento de uma democracia; a resistência aos abusos de quem conseguiu garantir para si, graças a essa democratização, um poder quase absoluto; os conflitos que uma sociedade cada vez mais capitalista naturalmente vive; e, em simultâneo, a velha tensão entre uma laicidade radical e o islamismo político.
  
Mas, acima de tudo, de forma violenta e extraordinária, a Turquia está a mostrar que mudou. Não mudou apenas por causa de Erdogan. E mudou mais do que Erdogan queria. Mas essa mudança, onde ele desempenhou um papel central, faz com que o próprio Erdogan não possa governar como gostaria. As manifestações e a sangrenta repressão que se abateu sobre elas podem fazer parecer que a Turquia está a recuar. É, na minha opinião, exatamente o contrário. Ela está a avançar. Com sofrimento e de forma confusa. Como é sempre a mudança. E é essa mudança que travará a brutal repressão que Erdogan, intoxicado pelo poder, impõe aos que lutam pela democracia plena.

(Daniel Oliveira, Antes pelo contrário, in Expresso)


Até breve
 

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