sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Melhor do que procurais é em quem tropeçais (II)



DANIEL OLIVEIRA - A ENTREVISTA E O MOMENTO (TOMO II)

«ML - Sobre as eleições autárquicas, que leitura pode ser feita dos resultados? Poder-se-á considerar que os resultados, do PS, PCP e Bloco mostram que apenas o PS está a ganhar com a actual solução governativa?



DO - Depois de Pedrógão, os comentadores políticos falavam que tínhamos entrado num novo ciclo político e que o PS estava em maus lençóis, mas depois teve uma vitória retumbante. Depois das eleições, passou-se a dizer que o PS iria ter [nas legislativas] maioria absoluta. E agora, depois desta tragédia, já se diz que Costa está acabado. É preciso de ter um bocado de calma a analisar os ciclos políticos e não tentar descobrir momentos históricos nos próprios dias históricos. É preciso ter calma com os futurismos.


A leitura que faço das eleições autárquicas, para além das leituras locais que são muito diferentes, é que as pessoas estão satisfeitas com a situação económica e social. Estando satisfeitas, tendem a atribuir ao Governo o resultado da sua satisfação e têm alguma razão para isso. É verdade que o Bloco e o PCP conseguiram muitas coisas, mas, não estando no Governo, é ingénuo pensar que se fica com os louros do que é bom e proteger-se, ao mesmo tempo, do que é mau. O Bloco e o PCP quiseram tanto proteger-se do que pudesse correr mal que se protegeram do que correu bem. Acho que isto não atinge tanto o Bloco. Já achava isso há um ano, que o PCP estava muito mais exposto que o Bloco.

ML - Mais exposto como?

DO - Primeiro, porque o PCP tem menos capacidade de adaptação, de conseguir surfar numa situação difícil, tem um barco maior que custa mais a virar a cada momento. Depois porque o eleitorado do PCP, do ponto de vista social, é o que mais tem beneficiado da reposição dos rendimentos – reformados, funcionários públicos. Portanto, é aquele que provavelmente está mais satisfeito com a Geringonça. Por outro lado, o eleitorado do Bloco é mais jovem, tem mais eleitorado do setor privado, mais eleitorado precário que ainda não sentiu de uma forma tão profunda os benefícios do que está a acontecer. Junta-se a isto o facto de PCP e o Bloco terem um discurso - mais o PCP – contrariado.

ML - O que quer dizer com discurso "contrariado"?

DO - Enquanto o seu eleitorado está satisfeito com esta solução, os dois partidos quase que pedem desculpa por estarem nesta solução. Estão sempre a dizer que este não é o seu Governo. Ou seja, a mensagem que passaram aos seus eleitores faz com que estes não lhes atribuam, injustamente, os bons resultados económicos e sociais que este Governo está a conseguir. Têm responsabilidades mas parecem não querer assumi-las. A única forma de as assumirem por completo era entrarem para o Governo e isso, infelizmente, não vai acontecer.

O que me está a assustar é o que está a acontecer, sobretudo, do lado do PCP. Enquanto o Bloco decidiu assumir de uma forma mais clara essa solução - em Lisboa, por exemplo, disponibilizou-se para construir uma geringonça - partes do PCP não. As greves que foram anunciadas e a manifestação por parte da CGTP, que são deslocadas no tempo. Não é fácil iniciar um processo de luta na Função Pública no preciso momento em que as carreiras são desbloqueadas. Ou seja, temo que o relógio, o alarme da Soeiro Pereira Gomes tenha soado na Vitor Cordon e acho que isso enfraquece o movimento sindical. É demasiado evidente que foi agenda eleitoral do PCP que determinou a estratégia de alguns setores da CGTP.

Acho preocupante e mau para o país que os sindicatos não tenham autonomia face ao Governo. Acho bem que os sindicatos lutem contra este Governo, que lutem contra as autarquias do PCP quando estão em causa direitos dos trabalhadores. O que me faz confusão é que não o façam durante dois anos quando julgam que o PCP está a tirar vantagens da 'Geringonça' e mudem de estratégia no dia em que se percebe que o partido está a passar por dificuldades. Precisamos de um movimento sindical forte e autónomo das estratégias eleitorais dos partidos. Em relação ao Bloco, apesar de tudo, acho que tem uma situação mais confortável. Se houver um novo ciclo político, veremos como é que os partidos estão nesta situação.

ML - Que arestas da 'Geringonça' ainda estão por limar?

DO - Não são arestas. É um diamante, uma pedra em bruto. Não há um programa comum. O programa que existia era de urgência que tinha a ver com a reposição de rendimentos e que foi, na realidade, praticamente cumprido. Desde há um ano que vivemos numa situação um pouco estranha em que o PCP e o Bloco são uma espécie de oposição construtiva que mantém o Governo em funções. E isso não é saudável. Deveria haver um novo acordo – há coisas em que sabemos que PS, BE e PCP nunca chegarão a acordo, mas há muitas em que podem chegar.

Há, diria, três áreas muito sensíveis. Uma tem a ver com a questão do trabalho, não tem a ver com Orçamento, sobretudo com a contratação coletiva. Acabar com a contratação coletiva é acabar com o sindicalismo e com a negociação no setor privado. Podemos decidir que o futuro do país não são salários baixos e que temos de combater a desigualdade que, depois, se não permitimos que haja os instrumentos de negociação para que isso também aconteça no setor privado, na realidade estamos só a mexer no setor público, nos impostos e nos reformados. Ora, nesta área o PS não quer mudar e não querendo mudar acho que trai o espírito da 'Geringonça'. Não há nenhum entendimento à Esquerda que não passe ou não tenha de passar pela questão laboral, não pode haver um entendimento à Esquerda que não tenha a questão da dignidade do trabalho e a redistribuição dos rendimentos como uma questão central na sua política.

A outra área tem a ver com a precariedade e os recibos verdes. É trágico que neste OE os únicos trabalhadores maltratados sejam os dos recibos verdes, é um péssimo sinal. Vão ficar a pagar muito mais, vão ter o maior aumento de impostos da sua história. Este Governo mexeu na precariedade na Administração Pública e ainda não fez rigorosamente nada na precariedade do setor privado. Sobretudo os falsos recibos verdes são o faroeste das relações laborais. Há uma parte muito grande da população para quem estas alterações que vão sendo feitas, todos os direitos, não existem. Isto cria uma clivagem no país e a sensação de dois mundos que não se tocam e legitima-se o discurso da Direita sobre um setor público protegido.

Depois, a questão do investimento público. Vai haver mais investimento público. O que me preocupa é que o Bloco e o PCP não participem nesse debate. Comportam-se um bocado como partidos reivindicativos em relação a direitos das pessoas, e bem, mas Bloco e PCP não são sindicatos, são dois partidos. Para lá dos direitos das pessoas, Bloco e PCP têm que se preocupar com o futuro do país. Não há programa de Esquerda para a mudança na nossa economia que não se concentre no debate sobre onde é que vai haver investimento público e para quê. Gostava de ver a 'Geringonça', e não exclusivamente o Governo, motivada para fazer esse debate. Bloco e PCP ainda não deram esse passo de responsabilização.

Estes são exemplos de como a 'Geringonça' não tem arestas para limar, é em si uma grande aresta que funciona porque, enquanto em toda a Europa assistimos a uma regressão civilizacional e perda de direitos, Portugal é o único país onde ou estabilizamos ou evoluímos.

ML - E quem é que poderá ‘saltar fora’ primeiro desta solução governativa?

DO - Ninguém. A 'Geringonça' vai durar até às próximas eleições legislativas, a não ser que aconteça qualquer coisa na Europa, a Geringonça vai manter-se. O diabo não parece que venha, a Direita, à falta do diabo, agarrou-se ao fogo, mas não chega. O PSD vai estar fechado para remodelação e não há nenhuma razão para que a 'Geringonça' falhe. E toda a gente sabe que o primeiro a largar a corda sofrerá as consequências.

ML - Nessa remodelação do PSD, Rui Rio ou Santana Lopes? Quem dos dois está em melhores condições de pegar no partido?

DO - Se não tivesse onde gastar o dinheiro, apostava na vitória interna de Santana Lopes. Tem mais ligação à estrutura, aos interesses dentro do PSD, mobiliza mais facilmente os Relvas desta vida. Santana tem melhores condições para vencer a liderança, o que será um sossego para António Costa. Santana Lopes é um caso extraordinário do eterno derrotado em quem as pessoas veem uma excelente pessoa para vencer. Perdeu três eleições internas dentro do PSD, quase todas de forma humilhante. Deu uma maioria absoluta ao PS no país. Na realidade, só ganhou uma vez uma eleição, em Lisboa, para João Soares. E quem acompanhou de perto sabe que foi João Soares que a perdeu. Santana será uma escolha que funcionará dentro do partido. Não mexerá muito nas estruturas, herdará as de Passos. O conservadorismo aqui, mesmo quando se está mal, costuma funcionar.

Rui Rio é uma incógnita para o PSD e, naturalmente, causa mais receios. Para o país também é uma incógnita. Acho que tem preocupações ao centro político com um perfil autoritário, muito mais autoritário que Cavaco Silva. Rui Rio tem mesmo tiques de tiranete e, quem acompanhou o que ele fez no Porto, sabe-o. Se ignoramos o que é bom para o país, é o melhor candidato para o PSD porque, pelas caraterísticas que tem, tem um discurso que chega mais facilmente a um eleitorado cansado, desiludido, até a um eleitorado de Esquerda. É mais transversal e, portanto, um maior risco para António Costa.

ML - E que efeitos terá esse maior risco na atual solução?

DO - Tudo o que seja um risco para António Costa, é bom para a 'Geringonça'. Porque retira a autoconfiança ao PS e obriga-o a ficar mais dependente do PCP e do Bloco. Tudo o que signifique manter o equilíbrio instável na 'Geringonça' acho que é bom para o país, porque significa que teremos um Governo mais ancorado à Esquerda.

Nesse ponto de vista, o desafio de Rui Rio é capaz de ser preferível para o país. O debate político é que vai ser deprimente no PSD. Vai-se discutir táctica, vai-se discutir fait-divers – aquilo em que Santana Lopes é especialista. Rui Rio também não é propriamente uma pessoa com uma enorme elegância programática. Vamos ter aquela política levezinha, que é boa para fazer notícias, mas que não é muito boa para discutir aquilo de que o país precisa. Se me dissesse que Santana era de Esquerda, eu acreditava [risos], se me dissesse que era da Direita conservadora, também acreditava. Porque ninguém lhe conhece grandes convicções políticas. Tem boas jogadas, diz umas coisas. Costa merecia do lado do PSD um político igualmente tenso. O problema é que o PSD tem uma crise de quadros. Quando um dos grandes ideólogos do PSD é Marques Mendes, estamos conversados. Hoje o CDS tem mais inteligência política. Os jovens mais à Direita, mais interessantes, tendem a ir para o CDS e não para o PSD.

ML - Por que razão está isso a acontecer?

DO - Porque o PSD é um partido de caciques. Um partido que se está a ruralizar, num país que não tem mundo rural. Está a perder força nos centros urbanos e não tem uma marca política clara. O PSD sempre foi uma coisa estranha, um objeto estranho no conjunto da Europa. Chama-se Partido Social Democrata mas que é um partido de centro Direita – coisa que não acontece em mais nenhum país europeu. Olhamos para o PSD hoje e não temos facilidade em encontrar quadros políticos que possam vir a ser líderes e não só. Desse ponto de vista, é um partido muito frágil e não sei quanto tempo demorará a reencontrar-se.

O PSD tem o seu panteão político cheio de derrotados. É o Santana Lopes, o Marques Mendes. Figuras que foram derrotadas várias vezes e que são as referências no partido. Não que a derrota seja uma vergonha. Só perde quem tenta Mas é um bocado estranho. A última figura de referência que o PSD teve foi Cavaco Silva...»
(Melissa Lopes, in Vozes ao Minuto) (Continua)


Farto de aventuras, juras, promessas e "dâmasos salcedes tóxicos e dependentes" da caixinha mágica, em verdade vos digo...

Melhor do que procurais é em quem tropeçais

Até breve

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